Bahia

Bacharel em Direito

Uma advogada chamada Marinalva: ex-presidente do Sindoméstico-BA se forma em Direito

Após longo percurso, a trabalhadora doméstica e ex-presidente do Sindicato, Marinalva Barbosa se formou em Direito

Salvador |
Marinalva de Deus Barbosa, ex-presidente do Sindoméstico da Bahia, se formou em Direito após um longo percurso - Divulgação

Marinalva de Deus Barbosa tem uma trajetória que inspira. Mulher, negra, pobre e nordestina, ela não foge a luta quando o assunto é a força e o sonho que movem quem sabe onde quer chegar. Trabalhadora doméstica, desde a juventude, ela deixa a sua terra natal na Zona Rural de Maragogipe, no Recôncavo da Bahia, para a capital do estado. Aos 17 anos, sem qualquer oportunidade de estudo, muda-se de mala e cuia para trabalhar em casas de família. A trajetória foi de muitos desvios, curvas e adversidades, mas confiante nos caminhos, Marinalva é vencedora de todo e qualquer limite. Depois de muitos anos de esforços, superação e estudos, neste momento, comemora a conquista do tão sonhado diploma de bacharel em Direito.

Primeiros passos

Nome importante na direção do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas da Bahia (Sindoméstico), Marinalva não esquece dos seus primeiros passos. “Eu vim pra Salvador, sem registro de nascimento e sem saber ler nem escrever. Trabalhei dois anos nessa cidade, sem registro de nascimento, juntei dinheiro do trabalho doméstico, para voltar na minha cidade pra me registrar”, relembra.  E antes mesmo de ter o documento oficial de nascimento em mãos, já dá os primeiros passos nos estudos.

”Eu comecei a estudar de noite, mas não conseguia me alfabetizar, porque eu já entrei no colégio no meio do ano. As pessoas que estavam, desde o começo, já sabiam tirar o assunto do quadro e eu não sabia. Eu ainda não tinha pego em um lápis. A minha mão era dura. Não sabia desenhar as letras”, relembra Marinalva ao nos contar o que teve que enfrentar e superar para garantir as suas conquistas.

Sua história de resistência com a educação encontrou alguns aliados. Uma professora sensível que ao perceber a dificuldade de Marinalva, a pegou, literalmente, pelas mãos para ensinar o caminho que precisava percorrer para alcançar a leitura e a escrita.

“Eu tive muita dificuldade de acesso à educação. Aí quando eu me alfabetizei em 88, eu nasci em 67 e só me registrei em 85, comecei a estudar. Fiz o que, na época, era o primeiro grau e depois eu fui para o segundo grau e terminei o nível médio. No ano 2000, fiquei lutando para conseguir entrar na faculdade até 2013. Em 2013, surgiu a oportunidade de fazer a faculdade de Direito”, declara Marinalva fazendo questão de nos contar a ordem cronológica de cada passo.  

Marinalva nos conta que a motivação para estudar Direito veio da própria experiência de militância no Sindoméstico. “Quando eu era presidente do sindicato, eu ia na delegacia com as companheiras que eram acusadas de roubo. E não conseguia entrar na sala para acompanhar o depoimento da trabalhadora”, relembra. Ela agora, comemora a possibilidade de entrar nesses espaços como advogada.  “Eu posso entrar na sala de audiência, como na Justiça do Trabalho ou em uma delegacia para acompanhar o depoimento das companheiras”, declara a nova bacharel em Direito.

Para grande parte da população brasileira pobre e sem oportunidades que também sonha com um diploma de nível superior, Marinalva abre o coração e diz que ainda não consegue estimular outras mulheres a fazerem o que ela fez, sem garantias ou redes de apoios. “Se tiver uma estrutura, entre. Se tiver um apoio familiar que ajude a fazer uma alimentação para você ter tempo de estudar. Mas do jeito que eu entrei, não aconselho ninguém a entrar sem estrutura, porque é muito sofrimento”, aconselha, Marinalva.

“Daqui a 5 anos, talvez eu consiga dizer: Faculdade é assim mesmo, depois dará certo, mas hoje eu não consigo garantir isso. É uma trajetória de solidão. Esse negócio de que uma sobe e puxa a outra, é só no discurso. Durante esse período, eu não achei apoio de rede”, confessa.

Ingresso na faculdade

Marinalva acessou o ensino superior, em 2013, mas sequer imaginava o mundo de dificuldades que esperava por ela. O curso de cinco anos de duração, por muitas razões, foi concluído em quase dez. “Eu demorei muito porque eu parei. Parei uns semestres por dificuldade financeira. A faculdade era particular e eu não tinha bolsa. Parei, voltei. Perdi muita matéria. Foi muito difícil, mas em dezembro do ano passado, em 2022, eu concluí o curso”, comemora a advogada.

A ativista se lembra que um ano depois de ingressar na faculdade, ela foi desligada do trabalho e perdeu a renda fixa que tinha. Sustentava-se, exclusivamente, com a ajuda de custo que recebia do Sindicato. “E aí, faltava dinheiro para livro, faltava dinheiro para xerox,faltava dinheiro para alimentação, transporte, mas eu fui me virando”, declara.

A dificuldade aumentou, o dinheiro não deu, Marinalva se endividou e interrompeu por um ano e meio os estudos, quando chegou a pensar em desistir.  “Nessa volta eu perdi o semestre todo. Então, foi uma grande decepção. E agora para encontrar motivação para recomeçar? Fiquei desmotivada, mas sempre tinha uma coisa que me puxava. E eu consegui no semestre seguinte fazer a matrícula e começar de novo. Eu perdia muita matéria porque não tinha tempo de estudar, mas não desistia. Pensava muito em desistir, mas não desisti. Apesar das dificuldades, eu continuava”, relembra Marinalva ao descrever obstáculos duros que teve que vencer.

Sindoméstico

Marinalva estava preparando o almoço na casa em que trabalhava, quando escutou uma entrevista sobre o Sindoméstico e, de pronto, tomou nota do endereço e do telefone.  Nesse mesmo ano, em 1993, Barbosa conhecia e se associava ao Sindoméstico e, na eleição seguinte, já foi convidada para fazer parte da Direção. Começava assim, a caminhada militante dessa profissional que sempre enfrentou a luta por si e por outras tantas trabalhadoras domésticas.

Em 2002, foi convidada para concorrer na chapa para presidência do Sindicato, para substituir Cleusa Oliveira. “Eu estava ainda no trabalho e em 2003 eu saí e fui viver o dia a dia do Sindicato. Eu comecei essa luta que foi também muito difícil, porque nessa época não tinha projeto no Sindicato, não tinha verba. O dinheiro que entrava só dava para pagar os dois funcionários. Não sobrava recurso pra receber uma ajuda fixa. Então, eu passei muita dificuldade. Até mesmo de alimentação”, relembra Marinalva que mesmo na vida simples de cidade pequena, comia do que a terra dava e nunca tinha passado fome até se mudar para capital.

Nessa luta, Marinalva ficou dois mandatos e entende o Sindicato como um espaço de transformação que já apoiou muitas vidas. “A discriminação do trabalho doméstico é muito grande. Se não fosse o Sindicato para acolher as trabalhadoras que são demitidas sem terem os direitos garantidos, seria pior ainda. No Sindoméstico, temos dificuldades de renovar as lideranças pela dificuldade financeira. Não é como os outros Sindicatos, que tem frota de carro, que tem o celular pago pelo Sindicato, que tem um salário. A nossa realidade é diferente porque quando todos tinham imposto sindical, a gente não tinha. A gente sobrevivia com muita dificuldade. E essa dificuldade nos acompanha por lá até hoje”, explica.

O futuro

Como advogada, Marinalva reconhece que, agora, começa uma nova luta. Estudar para a prova da OAB, trabalhar e ganhar dinheiro para compensar os períodos de dureza estão nos planos, mas pretende também fazer muito serviço social. “De onde eu venho, eu não posso esquecer o social. Essa faculdade não é um projeto meu, é um projeto coletivo. É um projeto para as mulheres negras, para as mulheres trabalhadoras domésticas, para a comunidade LGBT. Eu estou idosa, preciso de dinheiro, de uma alimentação adequada, de uma qualidade de vida, mas eu tenho muito trabalho social pela frente para fazer. Não pretendo esquecer de onde eu vim”, declara Marinalva.

Ela reconhece que a advocacia é uma profissão de elite, mas para quem é dos movimentos sociais, para quem é trabalhadora doméstica, não pode se esquecer dos seus. “Não posso esquecer das minhas companheiras. Não posso esquecer o Sindicato. Não posso esquecer minha história de luta, minha história de resistência, mas eu pretendo agora estudar pra tirar a carteirinha da OAB, ganhar dinheiro pra ajudar a minha família, a mim mesma e as companheiras, e continuar na luta”, afirma.

Edição: Gabriela Amorim