Não deveria existir a porta, mas já que existe é preciso quebrá-la.
O racismo rouba-nos o direito de sermos mais? Há tanto perigo assim em ser para além da aldeia? Ser para a aldeia é tão importante quanto ser para além dela.
Uma amiga me disse, com todo o sonho que não lhe cabia nos braços, que queria ser bem sucedida e ser a Luísa Sonza indígena. Sua afirmação dupla estrondosa me fez rir, por um tempo, até cair irrefreável em reflexão. Por que eu ri? Confesso que me senti hipócrita e um tanto alienado ao rir de tamanha obviedade. Percebi que aquelas afirmações me assustavam porque nunca vi lugar tão alto para um indígena estar. Temos uma Katy Perry indígena? Uma Marisa Monte indígena? De início um “não” veio apressado, desanuviando a possibilidade. Mas também uma sensação estranha de não referencial.
"Uma Luísa Sonza indígena" me atravessou feito faca. A associação de uma pessoa branca ao termo indígena pela não existência de referências originárias. Não estar nesse lugar, igualmente, é um lastro colonial que não nos permite expandir, crescer para além, estabilizando-nos em um único objetivo: sobreviver. Sobreviver principia os sonhos e emperra-nos em um contexto violento e frustrante. Como pensar em ser uma Diva Pop enquanto sua aldeia é invadida ou tomada? Como pensar em ser uma Diva Pop se o bem-estar da comunidade não for preservado? Não há sucesso se ele for individual? Não há individualidade enquanto a coletividade está em perigo constante? Não há sonho quando a realidade é um interminável pesadelo? Deveras, a relação dos povos originários com o sucesso costuma ser complexa.
A roda de privilégios valoriza os não indígenas, pois o contexto, a exemplo da indústria da música, mesmo escasso, é de passabilidade. Se não foi fácil para a Luísa Sonza, imagina para minha amiga indígena. A porta colonial está sempre fechada para o originário que ousa atravessá-la. E para a maioria daqueles que a atravessam, é preciso abrir mão de grande parte do que se é em ancestralidade para caber em uma caixinha única. Barganhar sua alma. Nesse epistemicídio, pacto com o diabo, há a opressão de seu saber e cultura para tornar-se mais atrativo ao capitalismo.
"Ser bem sucedida", tal frase expressa também me inquietou. A afirmativa soa como se ela, minha amiga indígena, ainda não fosse. A definição de ser bem sucedida é atrelada às visões de mundo e à cultura dominante em que estamos inseridos. Revogo tal afirmação de minha amiga, com todo cuidado, e questiono: será que ela já não é bem sucedida? Podemos pensar que, dada as composições etnográficas específicas da nossa população, a inferiorização dos indígenas é permeada pelo branqueamento. O branqueamento, entendam aqui, como um conjunto de normas, valores e atitudes associados aos "brancos", que as pessoas não brancas "precisam" adotar ou incorporar, a fim de assemelhar-se ao modelo "branco". Neste sentido, a cultura dominante utiliza o branqueamento como forma de categorização.Trata-se de uma associação eurocentrada ao status sócio-econômico dos grupos. É preciso desembaraçar das nossas visões originárias a categorização branca que não permite enxergar que já se é bem sucedido sem precisar atender às demandas, normas, regras que a cultura dominante estabelece, mas sim o que o seu povo, etnia estabelece.
Pensar o ser bem sucedido ao modus operandi da "sociedade hierarquicamente superior" é dar de cara com uma porta que nunca se abrirá, pois não se dará chaves para nós. A raridade ou ausência de indígenas no topo mostra que o racismo atua em diversas dimensões e camadas. Ele estrutura a sociedade a partir da desvalorização e restrição de oportunidades de ascensão social. Os indígenas até hoje não concorrem em condições de igualdade com os brancos. Porém, mais que isso, os indígenas não almejam os mesmos objetivos que os brancos. Ser bem sucedido para uma pessoa não indígena majoritariamente envolve possuir bens materiais, terras, dinheiro, popularidade. Para uma pessoa indígena é o inverso: estabelecer o bem-viver buscando a desconexão com esse modo de vida utilitarista; emancipar e preservar a terra entendendo-a como ser de direitos; entender a popularidade como visibilidade para suas lutas políticas… Ou seja, a porta que se abre para o não indígena é a porta que se fecha para um indígena.
É preciso quebrar a porta para existir para além da aldeia. Existir para além da aldeia é retirar o poder daquele que se colocou colonialmente como guardião da porta das oportunidades e do que se é entendido como bem sucedido. É levar sua ancestralidade contigo, sem barganha, sem apagamento ou opressão do que se é. Acreditar verdadeiramente em seu potencial e em sua capacidade de fazer com que sonhos, metas e objetivos se tornem realidade e mude sua realidade.
Há sim como seguir sonhos individuais potencializando o coletivo.
Não deveria existir a porta, mas já que existe é preciso quebrá-la.
Para minha amiga indígena, eu desejo força para quebrar a porta e coragem para atravessá-la sem perder suas origens. Desejo a possibilidade de expansão para além da aldeia. Enraizar-se não precisa ser a falta de movimento, mas a possibilidade de movimentar-se mundo afora levando suas raízes feito árvore
andante. Mas, acima de tudo, desejo que ela busque referencial nos seus, e quando não existir, que ela olhe para si e seja a primeira para as outras que virão.
Ser para a aldeia é tão importante quanto ser para além dela.
Edição: Gabriela Amorim