Bahia

Racismo ambiental

Rede de mulheres negras discute mudanças climáticas e propõe incidência em políticas públicas

Rede Vozes Negras pelo Clima reúne onze mulheres de oito estados para discutir e propor políticas climáticas

Salvador |
Rede Vozes Negras pelo Clima reúne onze mulheres de oitos estados, moradoras e ativistas de comunidades periféricas urbanas, quilombolas, pesqueiras e ribeirinhas - Arpoador Comunica Filmes

Historicamente no Brasil as populações negras e indígenas, em especial as mulheres, são as mais afetadas pelas mudanças climáticas. São elas que há séculos denunciam o racismo ambiental que sofrem em seus territórios: falta de saneamento básico, água, coleta de lixo, desapropriação, violências de todos os tipos. São elas também que desenvolvem uma série de tecnologias sociais e ancestrais para construir soluções comunitárias. No entanto, na hora da formulação de políticas públicas para a área climática, essas vozes não são escutadas.

Para mudar esse cenário, onze lideranças negras de periferias urbanas, comunidades quilombolas, pesqueiras e ribeirinhas de oito estados do Brasil (Bahia, Ceará, Goiás, Pernambuco, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Maranhão, São Paulo) estão articuladas na Rede Vozes Negras pelo Clima. Uma das ações previstas é a participação na 28ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2023 (COP28), que acontece entre 30 de novembro e 12 de dezembro, em Dubai, Emirados Árabes Unidos.

“A injustiça climática e o racismo ambiental impactam diretamente os nossos corpos. Nós é quem estamos a frente das diversas formas de cuidado. Não é escolha, é sobrevivência, é pelo bem viver. Desde as organizações dos quilombos na época escravocrata, passando pelas migrações climáticas, somos nós que estamos a frente do desenvolvimento de tecnologias ancestrais. Por isso, precisamos estar também no processo de formulação de políticas climáticas”, ressalta Camila Aragão, uma das lideranças que integram a Rede.

Moradora do bairro de Cassange, em Salvador e atuante em uma série de organizações, ela se apresenta como mulher negra, com baixa visão, ativista, arte educadora, defensora dos Direitos Humanos e agente comunitária de saúde.

Em Cassange, Camila integra a equipe de um projeto de pesquisa de gestão dos resíduos sólidos urbanos, desenvolvendo uma proposta de manejo apropriado para catadores e catadoras. “Aqui é um território bem atípico. Apesar de urbano, o condomínio do Minha Casa Minha Vida é uma favela vertical que está instalada dentro de uma Área de Proteção Ambiental (APA), rodeada por quilombos, zonas rurais, ribeirinhas e ocupações. E quem está à frente do cuidado, do plantio, do gerenciamento dos resíduos são as mulheres negras”, conta.

Nas comunidades pesqueiras da Bahia também são as mulheres negras que estão à frente da defesa do território, do cuidado coletivo, da criação de soluções para garantir dignidade às famílias. Maria José Pacheco, a Zezé, que também integra a Rede Vozes Negras pelo Clima, explica que são as mulheres que ficam no território quando ele está sob ameaça, sofrendo diretamente as consequências da crise climática e dos chamados “projetos de desenvolvimento” que não levam em conta os direitos das populações locais.


Embora as mudanças climáticas impactem mais diretamente mulheres negras e indígenas, elas não costumam ser ouvidas nas formulações de políticas climáticas / Arpoador Comunica Filmes

“São as mulheres lutam em defesa dos seus territórios. Os homens migram para outros estados para buscar outras oportunidades de trabalho e as mulheres ficam com suas famílias no território. As mulheres estão nos manguezais com seus corpos e, quando tem problema, são elas primeiras que sentem. Elas estão nos rios, nos estuários. Elas estão com a presença física. As mulheres também têm um jeito de trabalhar pensando para as presentes e futuras gerações. Esse jeito de trabalho garante que os recursos tenham para hoje e para amanhã e para as futuras gerações”, pontua.

Assistente social, Zezé Pacheco trabalha há 20 anos com comunidades pesqueiras. É membro do Conselho Pastoral de Pescadores (CPP), da coletiva Mahin e Especialista em Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais pela Faculdade de Direito da UFBA. Ela atua assessorando o movimento de pescadores e pescadoras artesanais na Bahia e também a nível nacional.

“O racismo ambiental é uma coisa a ser combatida e nós temos feito isso na base de nossa atuação porque assim, os governos e as empresas, eles identificam alguns territórios como zonas de sacrifício, lugares em que a vida, a história, o legado, a ancestralidade das pessoas e suas comunidades não importam, podem serem destruídas. Nós atuamos para impedir e denunciar isso”, reforça Zezé.

Direitos humanos e crise climática

A última edição do Informe “O Estado Dos Direitos Humanos no Mundo” (2022/2023), lançado anualmente pela Anistia Internacional, apontou que as populações negras e indígenas seguem sendo desproporcionalmente afetadas pelas violações do direito à alimentação, à saúde, à moradia, ao trabalho e à assistência social, entre outros.

De acordo com o relatório, o impacto dos desastres causados pelos efeitos da mudança climática e pela omissão do Estado em adotar medidas adequadas e suficientes para mitigá-los segue maior entre as comunidades marginalizadas, as mais afetadas pela falta de políticas públicas de habitação, saneamento básico e infraestrutura.

Ainda de acordo com o estudo, apenas nos primeiros cinco meses de 2022 foi registrado o maior número de mortes em uma década em decorrência de chuvas extremas. A maioria das pessoas afetadas era de mulheres negras moradoras de favelas e de bairros marginalizados, que estavam em casa quando aconteceram os deslizamentos e as enchentes.

Para Tâmara Terso, jornalista, pesquisadora e assessora de Direitos Humanos do projeto Mulheres Negras e Justiça Climática, da Anistia Internacional, é preciso denunciar a crise climática como uma crise dos direitos humanos. “A crise climática é uma crise de direitos humanos, é uma face da violência racial, do racismo ambiental. Por isso, é fundamental pressionar os tomadores de decisão para que as vozes das mulheres negras sejam consideradas na elaboração de soluções para essa crise”, defende.


A rede pretende fazer com que sejam ouvidas as vozes das mulheres negras mais impactadas pelas mudanças climáticas / Arpoador Comunica Filmes

Ela explica que denunciar a crise climática como uma crise de direitos humanos inverte o sentido de pensar as soluções. “Os tomadores de decisão das grandes empresas, hoje chamadas de ‘limpas’, adotam responsabilidades sociais e ambientais, mas que não passam de protocolos. A agenda de justiça socioambiental antirracista tem que pensar o combate ao racismo, a promoção de direitos das pessoas negras e povos e comunidades tradicionais e a efetivação dos direitos fundamentais dessas pessoas como primeira estratégia para se pensar políticas de combate às mudanças climáticas”, ressalta.

Tâmara explica, ainda, que as soluções que estão sendo elaboradas nos espaços recentes de decisão instituídos pelo governo federal no Brasil, entre eles a própria participação na COP, tem focado em soluções para a crise climática que envolvem a captura e venda de carbono, o investimento em energias consideradas limpas, entre outras estratégias que muitas vezes violam os territórios.

“A mudança de matriz energética que deixa de explorar combustíveis fósseis para explorar energia eólica está agredindo o meio ambiente, desapropriando famílias e violando o direito das comunidades que estão nesses territórios”, denuncia.


Zezé Pacheco argumenta que são as mulheres que lutam pela defesa dos territórios / Arpoador Comunica Filmes

Entre as soluções apontadas pelas lideranças quilombolas, ribeirinhas, pesqueiras e aquelas com atuação nas periferias urbanas estão o investimento na agricultura familiar, a organização de processos de efetivação ao direito ao meio ambiente, às águas, aos rios, o fomento aos processos de extrativismo tradicional numa interação entre terra e cultivadoras, em contraponto ao extrativismo predatório. São estratégias que já vem sendo desenvolvidas pelas onze lideranças que integram a Rede Vozes Negras pelo Clima, a exemplo de Camila Aragão e Zezé Pacheco, na Bahia.

“Essas mulheres apontam que é impossível construir uma transição energética, um processo de combate às mudanças climáticas sem resolver os problemas básicos do país, sobretudo, das comunidades como a falta de saneamento, acesso à educação, ao trabalho e renda nessas comunidades”, conclui Tâmara.

Mulheres Negras e Justiça Climática

A Rede Vozes Negras pelo Clima é parte do projeto Mulheres Negras e Justiça Climática, da Anistia Internacional, que visa expandir as vozes de mulheres negras a partir de seus territórios para denunciar o racismo ambiental que sofrem, mas também as soluções que desenvolvem. O objetivo do projeto é construir uma agenda antirracista que seja incluída na pauta regional, nacional e internacional da construção de políticas para combater as mudanças climáticas.

“Queremos, portanto, amplificar as vozes de mulheres negras para denunciar o racismo ambiental que sofrem, mas também amplificar as tecnologias sociais e ancestrais que essas mulheres empreendem nesses territórios violados para construir formas de existência, resistência, modos de vida e soluções para as mudanças climáticas”, explica Tâmara Terso.

Ela sinaliza que a rede foi sendo formada aos poucos, a partir das conexões estabelecidas pelas lideranças nos distintos territórios. “Em 2023, se estabeleceu com autonomia e tem construído processos importantes de fortalecimento institucional, que caminham ao mesmo tempo que os processos de formação nos temas dos acordos e conceitos sobre mudanças climáticas”, destaca a assessora.


Camila Aragão destaca que a injustiça climática e o racismo ambiental impactam diretamente os corpos das mulheres negras / Arpoador Comunica Filmes

O projeto prevê cinco encontros presenciais de formação. Já foram realizados três, na Escola Nacional Florestan Fernandes, em São Paulo. A expectativa é que em 2024 sejam realizados intercâmbios que vão proporcionar o encontro das lideranças pelos oito estados e distintos territórios para fortalecer os processos de incidência e elaboração de projetos e fomento de políticas de ação climática.

Para Camila Aragão, participar da Rede é uma forma de fortalecer a luta. “Unir onze mulheres negras potentes e engajadas na luta de diferentes lugares do Brasil é extraordinário. Um impacto gigante. A diversidade macro da rede, inspira e ensina a trabalhar com o recorte menor nos territórios, empodera e enriquece”, afirma.

COP 28

Em sua 28ª edição, a COP (sigla para Conferência das Partes, no inglês Conference of the Parties) vai reunir os 199 países membros que assinam a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (UNFCCC), responsável por estruturar as prioridades frente às ondas de calor, aquecimento dos oceanos, secas, enchentes e outros problemas ambientais. A COP é realizada anualmente pela ONU e reúne diplomatas, representantes dos governos e de organizações da sociedade civil. O objetivo é revisar os posicionamentos e ações de cada país, além de revisitar o inventário de emissões de gases de efeitos estufa. A primeira edição da COP foi em Berlim, em 1995.

Na COP 28 as lideranças que integram a Rede Vozes Negras pelo Clima pretendem pautar o debate sobre raça e clima, apontando as religiões de matriz africana e indígenas como impulsionadoras de cinturões de defesa do clima, à medida que são espaços permanentes de educação ambiental. Por isso, acreditam que é importante que as religiões afro-indígenas sejam parceiras no combate à crise climática.

Para Zezé Pacheco, é fundamental que as populações negras e indígenas participem diretamente de espaços estratégicos de incidência política, a exemplo da COP. “A maioria da população que é atingida pelos efeitos das mudanças climáticas é negra, de comunidade tradicional, são as populações periféricas, as populações indígenas. No entanto, quando tem um processo de advocacy, de participação em fóruns nacionais e internacionais, vai acontecendo o embranquecimento de quem tem condições de ter voz e vez”, aponta.

Outra ação de incidência prevista para acontecer no evento é a apresentação de um relatório que vai denunciar as violações de direitos humanos que acontecem nos territórios onde vivem e lutam as onze lideranças da Rede e pautar uma agenda antirracista para as mudanças climáticas. “O que a gente espera é dar visibilidade às questões do racismo ambiental que as comunidades onde nós atuamos enfrentam, articular apoios nacionais e internacionais em defesa das comunidades e também interferir na política ambiental nacional e internacional, de forma que a contribuição das comunidades tradicionais, das comunidades negras, das mulheres, seja considerada nesses processos”, conclui Zezé.

Edição: Gabriela Amorim