Bahia

Women Deliver

Jovem ativista baiana representa o Brasil em conferência internacional sobre direitos das mulheres

Yasmin Morais foi uma das brasileiras presentes no Women Deliver Conference, e conta sobre sua experiência

Salvador |
A jovem ativista baiana, Yasmin Morais, foi uma das representantes do Brasil no Women Deliver Conference, realizado em Ruanda - Arquivo pessoal

Após uma pausa durante os anos de pandemia da covid-19, em 2023 voltou a ser realizada a  Women Deliver Conference, desta vez em Kigali, Ruanda. O evento reuniu mulheres ativistas do mundo inteiro para discutir direitos sexuais e reprodutivos femininos.

Uma delas, foi a jovem baiana Yasmin Morais. Escritora e jornalista em formação na Universidade Federal da Bahia (UFBA), embora jovem Yasmin acumula um vasto currículo. Ela é integrante do Laboratório de Pesquisa em Mídia Digital, Redes e Espaço, acumula publicações literárias e premiações; em 2022, representou o nordeste como embaixadora na BC at Harvard & MIT e foi a primeira brasileira a palestrar no palco principal da maior conferência feminista da Europa.

Nesta entrevista ao Brasil de Fato, Yasmin falou sobre essa experiência de representar o Brasil na Women Deliver, impactos do racismo no acesso de mulheres negras aos direitos sexuais e reprodutivos, Mês da Visibilidade Lésbica e mais.

Brasil de Fato - Yasmin, em julho você esteve em Ruanda, como uma das representantes brasileiras no Women Deliver Conference. Poderia explicar um pouco pra gente o que foi essa conferência e quais os principais temas de discussão lá?
Yasmin Morais - A Women Deliver se trata de uma das conferências mais importantes a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres a nível mundial. As edições ocorrem a cada 2 anos, com a primeira tendo ocorrido em 2007. A edição de 2023 foi muitíssimo marcante e especial, porque foi a primeira edição a ocorrer no continente africano. E a região escolhida foi o país Ruanda, com a sua capital, Kigali.

Muitas pessoas podem não saber, mas essa foi uma escolha muitíssima assertiva, porque Ruanda é um dos países que têm estado à frente dos processos de criação de maior equidade de gênero, não apenas no continente africano, como também no mundo. Então, foi uma experiência maravilhosa, estar reunida com ativistas do mundo inteiro. Nós tivemos outras mulheres brasileiras, nós tivemos mulheres de diversos países, de vários continentes. Tivemos continente africano muito bem representado a Latino América muito bem representada também, e houve uma participação muito interessante do público jovem.

Qual a importância de ter uma jovem mulher negra e nordestina, como você, como representante brasileira num espaço como esse?
Eu sempre digo que, quando nós nos comprometemos com uma causa, nós estamos nos comprometendo não apenas com o espírito de uma geração, o espírito de um povo, como também conosco mesmas e mesmos. Eu comecei a trabalhar com ativismo social no ano de 2017, eu ainda era uma adolescente nessa época. Para mim, foi um momento muito solitário, por assim dizer, porque eu vivia na região metropolitana de Salvador, não possuía muitos contatos ativistas e comecei esse processo muito conectada comigo mesma, com os livros que li, com as teorias que estudei, mas não tão conectada com essa experiência mais física, essa vivência tão potente com outras e outros ativistas, que eu só comecei a ter a partir de 2018.

Estar na Women Deliver e, principalmente, representando o Brasil foi como uma grande coroação dessa trajetória, que só foi possível, porque, ao longo do meu caminho, eu fui apoiada por diversas mulheres, mulheres negras nordestina, as mulheres de outros estados do Brasil e até mesmo mulheres de outros países. Porque eu já estive como representante ou palestrante em outras duas conferências internacionais, uma delas foi a Filia Conference, no ano de 2022, na qual eu fui a primeira e mais jovem brasileira a estar no palco principal da conferência e até o momento eu ainda sou a pessoa mais jovem a ter palestrado no palco principal. E no mesmo ano, eu também estive na Brazil Conference at Harvard & MIT, que se trata de uma conferência organizada por estudantes brasileiros em Boston a respeito do Brasil e questões relacionadas às atualidades do nosso país.

Então, tem sido uma grande honra para mim representar o Brasil e, principalmente mulheres negras e nordestina, em tantos espaços. Porque, quando nós falamos a respeito da representação do nosso país, acaba sendo muito mais comum observar essa representação ativista que parte de locais como Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Santa Catarina. Mas quando nós falamos sobre o nordeste, e nordestinas feministas estando em espaços de poder e representação, percebemos que há ali uma disparidade.

É muito interessante que nós tenhamos em mente que o fato de ser uma pessoa negra não significa que nós representamos todas as pessoas negras. Cada pessoa negra vem de um espaço social diferente. A experiência de vida de uma mulher negra nordestina tem particularidades diferentes da experiência de vida de uma mulher negra no sudeste ou de uma mulher negra que vem de outro país. Por isso, é importante que todas as nossas vozes sejam ouvidas e estejam em espaços de poder e decisão, porque cada um de nós tem algo diferente a acrescentar, tem uma questão muito específica a trazer pertinente à experiência de vida das mulheres negras em cada região.

Sabe-se que no Brasil os índices de violência obstétrica são altíssimos, há uma grande dificuldade de acesso a métodos contraceptivos seguros, principalmente os de longa duração como o DIU, e há um alta taxa de mortalidade materna. Mas tudo isso atinge as mulheres de maneira diferente, não é? Por que, para as mulheres negras, esses índices são ainda piores e o acesso ainda mais difícil?
Quando nós paramos para pensar nos eventos que foram essenciais para a fundação do Brasil e quando nós voltamos um pouco mais nessa cronologia, podemos perceber que a exploração colonial, o tráfico transatlântico de indivíduos africanos para o continente americano e também os sofrimentos e opressões que foram, e ainda são, infligidos a afrodescendentes e indígenas no nosso país foram essenciais para a constituição daquilo que o Brasil é hoje.

É muito interessante nós falarmos sobre isso, porque muitas pessoas que às vezes não se debruçam profundamente sobre esses estudos, pensam que as consequências da colonização ficaram no passado e que nós, como povo, já deveríamos ter resolvido isso. Mas não é assim que funciona, porque a maneira como um país é fundado, a maneira como os alicerces de um país são firmados, influencia toda a história daquele país por muitos e muitos séculos. E o Brasil, infelizmente, é um país que nasceu da exploração de pessoas racializadas, com especial foco de mulheres racializadas. Quando nós pensamos, por exemplo, nos estupros cometidos pelos colonos contra mulheres indígenas, não apenas no Brasil, mas em várias partes da América, quando nós pensamos tanto na colonização portuguesa como na colonização espanhola, mas também quando nós pensamos em todas as violências que foram infringidas às mulheres negras nesse processo.

Quem já teve a oportunidade de ler bell hooks sabe que muitas violências específicas foram aplicadas às mulheres negras, na tentativa de que elas se esquecem de quem elas eram, de que elas esquecessem as suas culturas e de que, sobretudo, elas fossem docilizadas. Então, até dentro da própria teoria feminista nós falamos sobre como essa violência sexual, como essa expiação, como a maneira enquanto mina os nossos direitos são utilizadas para que nós nos tornemos dóceis, para que nós nos tornemos passivas. A violência, o terrorismo sexual, a constante ameaça da violência sexual, da falta de direitos sexuais e reprodutivos, da falta de proteção social, acaba sendo essencial para que esse local de subalternidade seja mantido.

Então, quando nós vemos todas essas desigualdades, que atingem profundamente a vida de mulheres negras agora, temos que ter em mente que esse cenário atual ele vem sendo construído há séculos. E para a manutenção da sociedade brasileira, tal qual ela é, com a sua estratificação social, se faz necessário que essa desigualdade continue. Então, é importante que nós tenhamos em mente que essa desigualdade serve a alguém, serve a uma classe econômica, serve a uma casta sexual, serve a diversos grupos que estão articulados para que nossa opressão continue e para que os privilégios deles continuem.

É interessante nós temos em mente que não existe no Brasil a experiência da mulher, existem as experiências das mulheres, porque mulheres brancas vivem e vivenciaram uma experiência levemente diferenciada, porque nós também temos que ter em mente que a opressão sexual ela atinge todas as mulheres. Nenhuma mulher está livre da opressão sexual, mas a opressão racial e a opressão por razões de classe e casta, econômica, racial, étnica, atinge apenas mulheres racializadas e mulheres, que, além de racializadas, também são da classe trabalhadora, também são pobres.

Então, sim, essa diferença existe. Alguns podem pensar que ela é sutil, mas não é sutil. É uma diferença muito profunda. Ser uma mulher branca não priva nenhuma mulher de não ter acesso à proteção, isso é verdade, mas ser uma mulher negra aumenta as probabilidades de uma mulher sofrer agressões de cunho sexual, ter a negação dos seus direitos sexuais e reprodutivos. Até quando nós pensamos em questões históricas como um mito de que mulheres negras sentem menos dor, que acaba levando ao fato de que mulheres negras às vezes recebem menos anestesia quando estão passando por processos cirúrgicos. Então, nós podemos perceber que a criação desse imaginário que nasce com a colonização influencia até hoje em como mulheres negras recebem ou podem aceder de fato a saúde pública, a questões de específicas e aos seus direitos.

Agosto é o mês da visibilidade lésbica, né?! Quais são as especificidades desse grupo quando a gente fala sobre acesso a direitos sexuais e reprodutivos?
Sim, agosto é o Mês da Visibilidade Lésbica. No dia 29 de agosto nós temos o Dia da Visibilidade Lésbica e no dia 19 de agosto nós tivemos também o Dia do Orgulho Lésbico. Então acaba sendo mesmo muito importante para as demandas das mulheres lésbicas.

É muito importante compreender que, até mesmo quando nós falamos sobre aspectos teóricos, teoria feminista, teoria lesbofeminista, essa relação, que não é apenas sexual, mas é sobretudo afetiva e de irmandade entre as mulheres, sempre foi muito perigosa para as estruturas sociais, tais quais elas são. Sempre foi muito perigoso para o patriarcado, que mulheres começassem a se irmanar com mulheres, algo que se tornasse muito mais robusto, socialmente falando. Porque até quando nós pensamos em questões como a amizade feminina, dentro da socialização feminina, dentro dessa ótica patriarcal, mulheres são desencorajadas a estar acompanhadas de outras mulheres, até mesmo em questões de amizade. Quem nunca escutou que uma mulher era falsa, que uma mulher estava apenas tentando roubar seu lugar ou roubar seu namorado ou roubar qualquer coisa que você tenha? Todas nós passamos por esse processo. Que, dentro da teoria feminista, nós chamamos de criação da hostilidade horizontal: começar a acreditar que a outra mulher é inimiga.

Então, dentro de uma sociedade que é toda estruturada para que mulheres se odeiam e odeiam a outras mulheres, ser uma mulher lésbica é extremamente revolucionário. E ser uma mulher lésbica politizada é ainda mais revolucionário, que significa expandir essas relações com outras mulheres, até mesmo para a criação deste conjunto fantástico de ações, que são a real sororidade. Quando você, de fato, prioriza mulheres na sua vida.

Então, quando nós falamos sobre direitos sexuais e reprodutivos, é muito interessante perceber que, principalmente no Brasil, há questões específicas do ativismo lésbico para o combate ao estupro corretivo, por exemplo, e também para a maximização de direitos sexuais e reprodutivos relacionados a acessos a meios de combate ao contágio de ISTs. E também questões relacionadas a um cenário Internacional que seria, por exemplo, o desenvolvimento de um mecanismo de barreira anti-IST, que fosse apropriado para o sexo entre mulheres. Afinal de contas, muitas pessoas não sabem, mas até o momento nós não temos um mecanismo que seja 100% seguro e 100% aferido para proteção contra ISTs no sexo entre mulher.

Edição: Alfredo Portugal