As famílias do assentamento Terra Vista, em Arataca (BA), denunciaram no início do mês o depósito clandestino de lixo em um lote pertencente a um dos assentados mais antigos da comunidade. Desde 2021, a empresa contratada pela prefeitura para fazer a coleta e transporte do lixo do município vinha depositando resíduos diariamente neste lote, inclusive no período noturno, finais de semana e feriados.
A comunidade do assentamento, no entanto, afirma que o depósito clandestino de resíduos vem acontecendo há muito mais tempo. No início dos anos 2000, a prefeitura instalou um lixão em um terreno vizinho ao Terra Vista. E em 2013, o despejo passou a ser feito também no lote do assentamento ocupado por seu Lourisval José Mendes, o seu Loro, de 76 anos.
Desde então, tanto seu Loro quanto outros assentados estiveram na prefeitura para reclamar, formal e informalmente. Mas, só após o Incra informar à prefeitura de que havia notificado o Ministério Público Federal (MPF) sobre o problema, esta teria suspendido o depósito irregular e iniciado a remoção do lixo superficial depositado no assentamento. No entanto, de acordo com os dirigentes do assentamento não foram apresentadas soluções para os resíduos aterrados no local, nem para a recuperação do solo e das áreas de nascente.
O assentamento cobra ainda a realização de um diagnóstico ambiental ampliado, com implementação de um plano de recuperação de áreas degradadas, implementação de um sistema de gestão de resíduos e conscientização através de um plano integrado de educação ambiental.
Em nota enviada ao Brasil de Fato, a prefeitura afirma que o lixo vem sendo depositado em área do munícipio. “O município de Arataca informa que não há aterro sanitário no município, sendo descartado o lixo coletado de toda cidade, dos distritos e dos assentamentos, em local apropriado para tal fim, em área pertencente ao município de Arataca”, diz o texto.
Certificação orgânica
A despeito do que diz a nota, Seu Loro, ocupante do lote, não consegue renovar a certificação orgânica de sua produção desde 2020, por conta do lixo que vem sendo depositado em sua roça desde 2013. “A não certificação compromete diretamente o valor de venda do cacau, além de ser um ataque direto ao trabalho de mais de 20 anos em busca da transição agroecológica. Fica a pergunta: quantos os anos o solo contaminado pelo lixão levará para ser curado?”, questiona seu Loro.
O assentamento cobra que seja feita a reparação indenizatória para seu Loro pela perda dos certificados orgânicos, pela drástica redução da sua produção de cacau e pela desconsideração do seu histórico de luta.
Em 1992, Seu Loro estava no grupo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que ocupou a área que viria a ser o assentamento Terra Vista. Desde o início dos anos 2000, quando a assentamento iniciou a transição agroecológica e o reflorestamento da área, ele tem participado ativamente do processo.
“Foram anos de trabalho na construção de um solo sadio. O dano causado pelo depósito do lixão é irreparável! Seu trabalho ser soterrado, literalmente, por lixo, inclusive hospitalar, é de se indignar”, afirma Joelson Ferreira de Oliveira, uma das lideranças do assentamento. Ela acrescenta ainda que, diante da quantidade e da toxicidade do lixo depositado irregularmente no local, há dúvidas que seja possível plantar de novo no local.
O Incra afirma que já oficiou o MPF, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), do governo do estado e encaminhou uma notificação para a prefeitura de Arataca. “O Incra na Bahia expressa o seu repúdio em relação ao que acontece no assentamento Terra Vista. E ressalta que a coleta, destinação e fiscalização é de responsabilidade da prefeitura. A regional baiana considera inadmissível que os envolvidos, prestadores de serviços públicos, ignorem os impactos negativos de suas ações, que estão causando prejuízos às famílias do Terra Vista”, disse em nota oficial sobre o caso.
Rio Aliança
Desde que iniciou o processo de reflorestamento local, o assentamento Terra Vista já recuperou cerca de 90% da mata ciliar do Rio Aliança que passa em seu território. O depósito irregular do lixo vinha sendo feito próximo a um córrego que deságua neste rio.
“Em vistoria no assentamento, o Instituto identificou detritos em área de preservação permanente de nascente de rio, com ossada de animais e de seringas descartadas, o que possui alta probabilidade de poluição da água que abastece o próprio município de Arataca”, disse em nota o Incra.
A prefeitura de Arataca nos enviou uma nota técnica da Embasa em que afirma que, embora a captação de água que abastece o município esteja a cerca de 500 metros da área de depósito de lixo, este não tem impactado na qualidade da água distribuída para Arataca. A nota reforça ainda a necessidade de implantação do Plano de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos por parte do município, uma previsão legal que existe desde 2012.
“Faz-se necessário a implementação da Política Municipal de Resíduos Sólidos, colocando em prática as ações que contemplem desde a coleta seletiva, a destinação adequada, até o tratamento dos resíduos, de modo a minimizar os impactos negativos”, diz a nota técnica da Embasa, disponibilizada pela prefeitura de Arataca.
A prefeitura afirma que tem planos de melhorar a destinação do lixo no município, no entanto, não informa prazos de execução. “A Administração do Prefeito Fernando Mansur vem trabalhando junto com o Consórcio [Intermunicipal Mata Atlântica] para a viabilização da construção do aterro sanitário regional de modo a acabar com os lixões na região”, disse em nota.
Assentamento referência
O Assentamento Terra Vista foi implementado oficialmente em 1994, mas a ocupação da terra foi iniciada pelo MST em 8 de março de 1992, em homenagem ao Dia Internacional das Mulheres. Com 900 hectares, o assentamento tem atualmente 55 famílias e é referência em preservação ambiental e agroecologia.
“O Terra Vista é agroecológico. Destaca-se pela produção orgânica de cacau e chocolate. Há muitos anos, o assentamento é certificado pelo Instituto Biodinâmico de Desenvolvimento Rural (IBD)”, afirma o Incra.
Joelson conta que, além de promover a recuperação da mata ciliar e manter a reserva legal de 34% de sua área, o assentamento também tem ajudado a reflorestar outros territórios, seja com compartilhamento de mudas e sementes ou mesmo de conhecimento. Ele acrescenta que essa ação já ultrapassou as fronteiras da Bahia e chegou, por exemplo, no território Maxakali em Minas Gerais, promovido através do intercâmbio de saberes promovido pela Teia dos Povos, rede da qual o Terra Vista faz parte.
“Nós temos piscicultura; cultivo de frutíferas e hortaliças, reconhecidas como produção orgânica, com selo do IBD; um centro que produz 150 mil mudas por ano e é também referência na produção de cacau orgânico”, enumera.
O assentamento também tem uma importante atuação na área da educação. Seu território já abrigou um curso de Agronomia, em 2008, em parceria com a Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e uma especialização em Agroecologia em 2014 em parceria com Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Atualmente, se realiza uma especialização em Educação do Campo também em parceria com a Uneb.
O Terra Vista mantém ainda o Centro Integrado de Educação Florestan Fernandes, o Centro Estadual de Educação Profissional da Floresta do Cacau e do Chocolate Milton Santos e a Fábrica Escola de Chocolate Terra Vista. “Mais de 400 pessoas, entre assentados, comunidade de Arataca e região, estudam nos nossos centros educacionais”, contabiliza Joelson.
Edição: Alfredo Portugal