Neste ano que se comemora o bicentenário da Independência do Brasil na Bahia, há um especial esforço por parte de movimentos e organizações populares em resgatar a memória da participação popular nas batalhas que culminaram na expulsão dos portugueses do solo brasileiro em 2 de julho de 1823. Parte desse esforço é de recontar a história do protagonismo do povo indígena nesse processo.
“Existe um processo de apagamento e invisibilização dos povos indígenas na história oficial da Bahia e do Brasil, às vezes inconsciente, mas por vezes desejável, especialmente por parte de algumas instituições públicas e dos que detêm poder político e poder econômico”, enfatiza o professor Casé Angatu Xukuru Tupinambá. Casé é indígena, morador do território Tupinambá de Olivença, historiador e professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), em Ilhéus (BA).
Em entrevista ao Brasil de Fato, ele destaca os esforços em apagar a presença indígena na história da Bahia e do Brasil, ao mesmo tempo em que aponta a urgência em reescrever essa mesma história. “É uma resistência! É necessário reescrever essa história, sim, e colocando o nosso protagonismo, que sempre existiu. É impossível dizer que a Independência foi feita por um filho de um português, filho de um colonizador que manteve a escravidão”, diz.
Casé Angatu é também doutor e mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), graduado em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autor dos livros “Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza de 1890 a 1915” e Identidade Urbana e Globalização: a formação dos múltiplos territórios em Guarulhos (SP). Confira a seguir a entrevista completa com ele.
Brasil de Fato - Este ano, a Independência do Brasil na Bahia completa 200 anos. Agora em julho, vimos muitas homenagens aos caboclos, aos povos indígenas que participaram das lutas, mas sempre de uma maneira genérica, né?! A gente não tem o nome, os rostos dessas pessoas. O senhor considera que existe um processo de apagamento dos povos indígenas na história oficial da Bahia e do Brasil?
Casé Angatu Xukuru Tupinambá - Com certeza existe um processo de apagamento e invisibilização dos povos indígenas na história oficial da Bahia e do Brasil, às vezes inconsciente, mas por vezes desejável, especialmente por parte de algumas instituições públicas e dos que detêm poder político e poder econômico. Costumo dizer que, no Brasil, é estrutural o racismo contra nós indígenas, mas também a tentativa de nosso apagamento físico, que é o genocídio, e de nosso apagamento cultural e espiritual, que é o etnocídio. Muitas pessoas por vezes me perguntam: professor Casé, não consigo enxergar a presença indígena na formação sociocultural Brasileira e na minha própria. Costumo, dizer que é são duas razões: por causa da nossa forma de ser indígena e por causa de um direito originário ancestral que nós temos ao território. Nós já somos um outro mundo onde cabem vários mundos, não é? Nós já temos uma outra relação com o mundo. Uma anciã nossa, grande Amotara, mãe de cacique Valdelice, tinha uma poesia que é mais ou menos assim: Aqui tinha uma grande nação / descoberta pelos brancos. Para nós, invasão / Aqui não tinha divisa, não tinha cerca / Nossa Riqueza era partilhada / Aqui não se acumulava nada / Hoje tudo é garantia / mas quem pratica a igualdade / não precisa de utopia.
Amotara nos ensina isso, que essa nossa forma de ser é coletivista, que partilha de vivência com a natureza como um pertencimento e ela incomoda, por vezes, aqueles que estão à frente do poder público e do poder econômico. Nós temos uma forma de trabalhar a temporalidade diferenciada. Aquilo que muitos chamam de nossa cosmologia, universo epistêmico, não bate, por vezes, com a ordem capitalista mercadológica. E isso incomoda, não é? Então, naturalmente, nós somos contra-coloniais, uma palavra que está muito em vigência. Culturalmente, nós, povos originários, somos contra-coloniais, porque nós não queremos viver explorando a natureza, onde um alguns vêm um monte de mato, nós vemos as encantarias, as energias dos nossos ancestrais. E isso incomoda.
Soma-se a isso o nosso direito congênito, originário, natural, relacional, existencial à terra. Não como propriedade, mas como pertencimento. A Teoria do Indigenato, desenvolvida por João Mendes Júnior, um jurista de 1912, já assinalava que o título das terras indígenas é natural, é um título originário que decorre do simples fato de sermos indígenas. Esse título do indigenato, que nos faz sermos os da terra, precede qualquer direito, inclusive, ao direito do Estado ou qualquer direito de propriedade privada. Essas são, na minha leitura, as razões que por vezes existe é o apagamento.
Existe na Bahia (e no Brasil de forma geral) uma visão muito mítica das pessoas indígenas, como o índio genérico. No entanto, só a Bahia tem 33 povos indígenas diferentes, da praia e do sertão. Qual o problema em se manter essa imagem genérica e mítica do “índio” no senso comum da sociedade?
Nos conta a grande pesquisadora Manuela Carneiro da Cunha que, já no século XIX, nos dividiam como índios bravos e índios domésticos ou mansos. O índio bravo é aquele que não aceitou a colonização portuguesa, é aquele indígena resistente às imposições, e não importa se ele tem contato ou não tem contato, é chamado de bravo, porque não se submete às imposições da colônia, da ordem jesuítica, às imposições do Império, às empresas do Brasil colônia, o processo de catequização ou processo de evangelização e o processo de retomada de suas terras. Como em Olivença, onde eu moro. Por que os tupinambás de Olivença são chamados de bravos? Porque nós resistimos, não é?
Quando eles usam o termo doméstico ou manso o que se quer é etnocidar. O problema é manter essa figura mítica para combater o índio bravo! Quem é aqui que não tem a história de uma avó indígena, bisavó pega a laço, a dente de cachorro, que dormia com pé amarrado na cama, que era índia brava. Alguns são domesticados, não vou negar, porque há um processo de inculcação forte e violento. Ah, não existe mais tupinambá, não existe mais mura, não existe mais charrua são povos tidos como extintos no século XVI. Por quê? Porque nos mataram. Houve um massacre, mas não extinção. Eles pensaram que nos tinham genocidado por completo. Mas nós re-existimos, nós resistimos e re-existimos de diferentes formas.
Ou seja, o etnocídio, isso de negar ou de nos congelar no século XVI, quando é feito pelos grupos dominantes no poder, é sim uma tática de “desindialização”, para dizer que os índios de hoje, que usam celular, que cursa uma universidade, que vai buscar o seu doutorado, que está nos meios urbanos, não são mais indígenas. Isso é uma tática do etnocídio! No meu livro, chamado “Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza”, que foi a minha dissertação de mestrado, eu mostro que cidades como São Paulo praticou teoria racial no final do século XIX, começo do século XX, mesma época que nós estamos falando da Independência. Qual que é esse projeto racial? Se queria uma nação que fosse branca, mas com um grande contingente de indígenas e dos nossos irmãos negros escravizados vindos da África. Então, você tinha que mostrar que esses indígenas que estávamos aqui deixamos de existir no século XVI e XVII.
Tem um professor, Francisco Cancela, que brilhantemente fez uma pesquisa falando do protagonismo de nós indígenas nas vilas indígenas. No século XVII, nesses antigos aldeamentos, os meus parentes ancestrais reivindicavam e lutavam, inclusive mandando coletivos de indígenas para a frente de lutas nas expulsões dos portugueses, dos galegos. Há uma participação direta no processo de indígena na expulsão dos portugueses, né? Indígenas vindo de lugares como a Vila Verde, Trancoso, Porto Seguro, Olivença e mesmo da região de Salvador. Nunca se esqueça, Kirimurê, Salvador é terra Tupinambá, sempre foi terra Tupinambá! É uma memória que, aliás, tinha que ser resgatado nas escolas, viu?
E qual a importância de reescrever essa história a partir de uma perspectiva indígena também?
É uma resistência! É necessário reescrever essa história, sim, e colocando o nosso protagonismo, que sempre existiu. É impossível dizer que a Independência foi feita por um filho de um português, filho de um colonizador que manteve a escravidão. Então, é por isso que é necessário reescrever a história para, justamente, fazer isso que eu acabei de fazer: a crítica da história oficial, e apresentar outras possibilidades.
Então, no dia 21 de abril, vamos parar com essa ideia de descobrimento! Foram invasões! O Brasil foi um país é invadido, e nós povos indígenas estamos em guerra por Independência. Os invasores não fizeram guerra, fizeram massacres. Quem fez guerra de resistência fomos nós povos indígenas, o povo brasileiro. Essa é uma primeira percepção que tem que pensar na história da Bahia. História do Brasil também. Nós já sabíamos o que era excludente ilicitude no século XVII. O indígena que não aceitasse a catequização poderia ser escravizado, violentado, morto. Esse que foi tirado da presidência, miliciano não é o primeiro da história, não. Quem são os bandeirantes? Quem são os capitães do mato, quem são os governadores gerais desse país? O manto tupinambá foi roubado. Está para ser devolvido, não é? Mas foram roubados os mantos, não só um manto, as vidas. Dinamarca vai desenvolver as vidas, a Europa vai desenvolver as vidas retiradas?
A história oficial desse país é parte do processo de genocídio e de etnocídio. Porque trata-se de quando as pessoas que vivem na pobreza dos meios urbanos, nas cidades do interior da Bahia e desse país, perceber que muitas eram descendentes de indígenas que foram espoliados das suas terras, que seus ancestrais tiveram as suas terras espoliadas, e que razão de sua pobreza material, é porque houve um processo histórico de espoliação. É disso que se trata quando se fala de história dos povos originários. Trata-se de um processo histórico de roubo das terras originárias, de escravidão de estupro, de violência. E por isso que a história oficial tem que nos apagar.
Qual o papel do acesso dos povos indígenas à educação formal nesse esforço de reescrever a história oficial?
É uma pergunta fundamental, não é? Sabe que existe a educação indígena e educação escolar indígena. A educação indígena ela é anterior à educação escolar indígena. Toda criança, toda pessoa que nasce numa comunidade indígena já tem uma educação indígena. Que é subir no pé de piaçava, um coqueiro, colocar tarrafa para pegar peixe, respeitar a natureza, colocando roça cabruca sem desmatar, fazendo o plantio olhando a Lua. A partir dessa educação indígena é que se baseia a educação escolar indígena, e nós podemos oferecer isso. [É preciso] que as escolas reatualizem seus currículos nesse sentido.
É fundamental nós estarmos na escola. Para nós, nos formar, termos títulos de doutor, de mestre, nos graduar e termos esses saberes é como mais são flechas em nossos arcos para lutar por nossos direitos. Não é uma formação só individual. Nós pensamos coletivamente, porque somos sujeitos coletivos.
Nós estamos tendo esse acesso para lutar por nossos direitos. Precisamos da demarcação. O povo Tupinambá está com o seu território para ser marcado desde 2009 – desde 2009, não, desde 1500! Nós temos que derrubar o Marco Temporal. Que esquece, por exemplo, isso que a gente acabou de falar na entrevista, que muitos indígenas foram expulsos da terra e muitos que ficaram não podiam se assumir como indígenas se não morriam. E muitos que foram embora voltaram, então, por isso que o Marco temporal é um absurdo. Por isso que a gente exige que o STF vote o mais rápido possível e derrube o Marco Temporal. A gente exige que o Congresso Nacional derrube esse Marco Temporal e demarque imediatamente as terras indígenas.
É disso que se trata, não é? A gente não está falando só no abstrato, não, está falando do concreto. Nós precisamos de ter nossas terras demarcadas no Brasil inteiro, fazendo valer a Constituição de 88, que dizia que depois de 5 anos de 88, todas as terras indígenas seriam demarcadas. Cadê? É isso que nós queremos. Queremos demarcação já, não ao Marco Temporal.
Edição: Alfredo Portugal