A nova montagem do Bando de Teatro Olodum repercute e reflete sobre o Bicentenário da Independência do Brasil na Bahia.  “A Resistência Cabocla” estreou nas ruas, ao lado do monumento ao Caboclo do 2 de Julho, e agora, segue com apresentações até o dia 13 de julho, no espaço Boca de Brasa Subúrbio 360, em Alto de Coutos, para escolas municipais da capital baiana. O espetáculo conta parte importante da história de resistência do povo baiano contra o domínio português, sem deixar de esperançar e de conectar o olhar para o futuro e para novos gritos de liberdade.

Na encenação, o Bando lança o olhar para o protagonismo de mulheres, negros e indígenas que possuem atuação relevante na Batalha e apresenta personagens ainda pouco conhecidas dos livros tradicionais de história. A peça destaca personagens como Maria Felipa, Maria Quitéria, o Caboclo Tupinambá, o Corneteiro Lopes e o indígena Bartolomeu, representante dos primeiros defensores da terra e da natureza do Brasil. Como marca incontestável do que move o DNA da companhia negra mais popular da Bahia, o Bando recria no palco essa luta com narrativas de esperança.

Com texto inédito do dramaturgo Daniel Arcades, consultoria da pesquisadora Mabel Freitas e direção coletiva de Cássia Valle, Valdinéia Soriano e Leno Sacramento, a peça tem um olhar feminino muito forte, é o que defende a atriz fundadora e também produtora do Bando, Valdinéia Soriano. “Eu acho que é tudo uma grande celebração. Celebrar o bicentenário, celebrar o retorno do Bando de Teatro Olodum aos palcos [pós-pandemia], celebrar a nossa ancestralidade, essa união dos povos indígenas com os povos pretos que lutaram para defender a independência, para defender o solo baiano e que, muitas vezes, foram esquecidos”, declara Val, como é carinhosamente chamada.

Com a perspectiva de entender o passado, mas também interpretar e entender o agora para transformar o tempo que virá. “Tudo dentro de uma grande celebração, onde o olhar feminino está muito presente e o olhar da juventude também. O olhar dos jovens pretos olhando pra frente. A gente olha para trás para contar nossa história pensando lá na frente. Então, o espetáculo traz dois jovens tentando entender a Independência da Bahia”, complementa Soriano.

Naira da Hora está no Bando de Teatro há 10 anos e é a primeira vez que interpreta uma protagonista. Ela, que já tinha no grupo uma referência e inspiração, entrou na Companhia para substituir uma atriz e, desde então, vem aprendendo muito sobre a arte de atuar. Uma década depois de iniciada nessa experiência, Naira tem a oportunidade de interpretar Mirna, uma jovem que, para ela, gera rápida conexão e identificação com o público.

“Mirna representa uma grande parcela da população brasileira que está descrente, que está cansada, que está desesperançosa, mas se identificam também com o renascimento da esperança de Mirna, a partir do momento que ela conhece e se apropria dessa história”, declara. Naira se refere à força ancestral de heróis e heroínas que resistiram no 2 de julho, com o tanto de força que há em todas as pessoas, hoje, herdeiras diretas desse povo que não foge à luta.

“Mirna é de fundamental importância para renovar as esperanças da população”, afirma a atriz, feliz pela oportunidade de interpretar a personagem. “A gente desconhece a história da forma correta. A imagem da representatividade não é mostrada para nós, e a história é contada por outras vertentes”, declara Naira ao relembrar a busca, já adulta, por outras narrativas de personalidades e de mulheres negras que assinam com as suas vidas as narrativas dessa Independência.
 
“E foram muitas mulheres. As enfermeiras que a gente não sabe os nomes. As mais velhas que davam seus banhos de folhas em alguns dos soldados. As indígenas que ficavam ali observando, na espreita, nas matas, tentando proteger tudo do colonizador. São muitas mulheres, além de Maria Felipa, Maria Quitéria e Joana Angélica. Joana Soleira, Brígida do Vale, Marcolina, as indígenas que a gente não sabe os nomes”, reforça Valdineia ao defender a luta, na vida e nos palcos, com forte presença feminina. “Algumas mulheres, com nome e sobrenome e outras que, infelizmente, os nomes se perderam”, diz Val ao reconhecer nesse anonimado e na ausência de registros o silenciamento histórico ao qual o feminino ainda é submetido.

Direção Coletiva

O Bando sempre foi uma companhia pautada na coletividade. Talvez, por isso, para Soriano, dirigir a muitas mãos foi uma irmandade. “Leno e Cássia são irmãos de longa data dentro do Bando, como artistas e como pessoas, também.  Cássia  deve ter uns 30 anos e Leno uns 26 de Bando. Então, há muito tempo que a gente está junto, que a gente se conhece, se entende e se diverte muito juntos”, declara. Além da rica experiência de dirigir com seus parceiros, Val também destaca a alegria de dirigir um elenco talentoso e com quem também já dividiu muitos palcos.

“Uma honra estar dirigindo o meu bando. Minhas colegas e meus colegas de trabalho. Eu olho para Jorge e sei o que Jorge vai dar, olho para Marie, para Arlete, para Rejane e sei o que eles vão dar. Foi incrível. Quando um pensava, o outro já complementava.  O elenco recebeu super bem. Realmente, pra mim, foi um prazer, estar à frente de tudo isso”, conta.

Novos gritos

Naira se orgulha do projeto do qual faz parte e reconhece os frutos e as colheitas dessa experiência em sua vida. “Transformar essa história em uma linguagem artística e popular para que a galera comece a entender que não é só arte. É uma arte política, é uma arte de transformação, de agente de mudança, quando muitas vidas mudam, de verdade. Muitas vidas mudaram. A minha mudou, a de todo elenco”, declara Hora, confiante no ofício que realiza e nas mudanças promovidas pelos palcos do Bando.

Ao retomar o passado para contar a história do 2 de Julho, o hoje e o agora também se impõem como pergunta e com gritos atualizados. Valdineia reconhece que são muitos os novos gritos, mas, para ela, o primeiro é contra o racismo. “O racismo é perverso. Quando você pensa que você venceu de um lado, ele vem de outra forma, com outra lança. Você tem que ter o seu escudo fortíssimo para se proteger, para se defender, porque se não ele te enlouquece. Ele dói, ele te adoece”, afirma.

“Esse é o grito que a gente precisa dar primeiro. Depois, vem a mulher preta dentro de uma sociedade machista e racista. O tempo inteiro a gente tem que provar valores, provar a nossa importância dentro da sociedade. Isso também é um grito. E outro grito que a gente nunca interrompe, enquanto nordestino, artista, preto, é provar a todo instante a capacidade e o talento”, declara Valdineia ao enumerar os desafios de agora. “A gente não para. A gente está todo o tempo em guerrilha, não consegue baixar a guarda”, pontua.

Enredo

A Resistência Cabocla conta a história de dois jovens negros que se preparam para participar dos desfiles ao 2 de Julho, em Salvador. Enquanto Luque está ansioso para desfilar como baliza à frente de uma das fanfarras, a musicista Mirna faz vários questionamentos sobre a sua participação nos festejos, especialmente por sentir falta de representatividade negra e feminina no que aprendeu sobre a data.

A aparição fantástica do Caboclo Tupinambá conduzirá os jovens às imagens históricas das lutas travadas em solo baiano para expulsar as tropas dos colonizadores, que resistiam mesmo depois do 07 de setembro de 1822, trazendo à cena do espetáculo a bravura popular que garantiu definitivamente a independência do país.

33 anos de atuação nos palcos

A companhia negra mais popular e de maior longevidade na história do teatro baiano e uma das mais conhecidas do país, o Bando de Teatro Olodum nasce em 17 de outubro de 1990, em Salvador, fruto da parceria do Grupo Cultural Olodum, do diretor Márcio Meirelles e de artistas compromissados com as lutas das comunidades negras e com a valorização da performance e da estética negras.

Com 33 anos de atuação, mais de 30 espetáculos, filmes e séries televisivas, o Bando de Teatro Olodum vem se destacando na cena brasileira por colocar em prática um complexo projeto poético-político que inclui representar o cotidiano da população negra, combater o racismo, valorizar e divulgar a cultura negra no país, contribuir para a presença ativa do negro na sociedade, promover a conscientização e a construção das identidades negras, capacitar artistas negros, desenvolver dramaturgia e linguagem cênica própria.

Atualmente, a companhia possui uma coordenação colegiada, formada por Cássia Valle Fabio Santana, Jorge Washington e Valdineia Soriano, artistas que integram o elenco e atuam também como produtores, e os diretores artísticos: o coreógrafo José Carlos Arandiba, Zebrinha e o músico Jarbas Bittencourt.

Edição: Gabriela Amorim