Nas últimas semanas, dois processos criminais sobre assassinatos de uma criança e um jovem em operações policiais passaram pela fase de instrução cerca de uma década depois de ocorridos os crimes. Mirella Barreto, de 6 anos, foi morta em 17 de março de 2017 durante uma incursão da Polícia Militar na Gomeia, no bairro de São Caetano em Salvador (BA). Carlos Alberto Júnior foi morto em uma incursão da PM no Nordeste de Amaralina, também em Salvador (BA), em 2013.
De acordo com dados da Rede de Observatórios de Segurança, em 2021, 616 pessoas foram mortas em decorrência de intervenção de agentes de Estado na Bahia. Destas, 97,9% eram negras. Em Salvador, ainda de acordo com a Rede, 299 foram mortas naquele ano, e apenas uma era branca.
Para além da violência urbana sentida por todos os moradores da capital baiana, as comunidades periféricas vivência um alto índice de letalidade policial, é o que aponta Gabriela Ramos, coordenadora do projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, do Instituto Odara, que acolhe famílias vítimas da violência de Estado. “Salvador desponta como a segunda cidade que mais tem mortes decorrentes de ações ou operações policiais [no país]. Então, não é um caso isolado, é um fenômeno que tem inclusive recrudescido nos últimos anos”, explica a advogada Gabriela Ramos.
O Brasil de Fato entrou em contato com a assessoria de comunicação da PM, questionando se a corporação produz dados sobre letalidade das operações e incursões, se há ações e/ou projetos que visem a diminuir tais índices etc. Até o fechamento desta matéria, ainda não havíamos obtido resposta.
Judiciário
Tomando como exemplo os casos de Mirella e Júnior, Gabriela Ramos aponta que há uma lentidão maior na tramitação dos processos que tratam de mortes em decorrência da ação de agentes de Estado. “Acreditamos que o sistema de justiça acaba sendo um tanto corporativista com as instituições policiais nesses processos. Isso quando esses casos chegam a se tornar processos judiciais. Muitos deles são arquivados ainda na fase de inquérito”, aponta.
Também entramos em contato com a assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça da Bahia, a fim de obter dados sobre o tempo médio de tramitação dos processos criminais do estado. Até o fechamento da matéria não havíamos recebido resposta.
A advogada Gabriela Ramos acrescenta que algumas dessas investigações iniciais são realizadas pela Corregedoria da PM e não chegam a se tornar processos. “Não tem como a própria polícia investigar e fiscalizar a atividade policial e isso ser num tempo hábil e de uma forma que a sociedade civil entenda adequada”, acredita a advogada.
O processo sobre a morte de Mirella, 6 anos, finalizou a fase de instrução neste mês, seis anos após o assassinato da menina. Agora, a justiça definirá um prazo para as alegações finais de defesa e acusação, só depois disso, será decidido se o caso vai ou não a júri popular. O policial Aldo Santana do Nascimento acusado de efetuar o disparo que vitimou Mirella chegou a ser afastado da PM, mas já retomou suas atividades.
Já o processo sobre o assassinato de Carlos Alberto Júnior, ocorrido em 2013, ainda não finalizou a fase de instrução. Respondem pelos crimes os policiais Jefferson França, Diego Luiz Silva e Iapuran Cerqueira Junior.
“As famílias acabam sendo re-vitimizadas nesse interregno. A condenação dos policiais não vai trazer de volta essa pessoa que foi vitimada pela violência, mas muitas dessas famílias não conseguem seguir, reestabelecer o mínimo de fluxo na vida enquanto esses processos correm”, ressalta Gabriela Ramos.
Sem apoio do Estado
A coordenadora do projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar aponta ainda que o sofrimento dessas famílias é intensificado com o prolongamento dos processos e a falta de apoio do Estado. As famílias das vítimas de violência estatal não recebem nenhum tipo de apoio, nem financeiro, nem jurídico.
“O Estado precisa pensar em formas de acolher essas famílias independentemente da responsabilização individual dos policiais ou não. Se a polícia mata uma criança, um jovem, independente das circunstâncias, o Estado também falhou no acolhimento, na proteção desses jovens, dessas crianças”, defende.
A Constituição brasileira preconiza que crianças e adolescentes são prioridade absoluta não só das famílias, mas também do Estado e de toda a sociedade. Gabriela Ramos pontua que o Estado falha em prover condições de vida adequada para crianças e adolescentes, as mantendo longe da violência e mesmo evitando que entrem em contato com o aliciamento de organizações criminosas.
“Não tem como o Estado não ser responsável por isso. Seja porque não deu melhores condições de vidas e circunstâncias para essas crianças, seja porque é o próprio Estado que está metendo bala na cabeça dessas crianças”, diz. Neste sentido, ela defende que o Estado deve pensar em formas mais abreviadas e objetivas de indenizar as famílias vítimas da violência de seus agentes, sem que precisassem passar por um processo judicial extenso.
Projeto
O projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar é desenvolvido em comunidades periféricas de Salvador junto aos jovens, em caráter de prevenção, promovendo formação em direitos humanos, comunicação e outras linguagens para que tenham ferramentas de salvaguarda de seus direitos e possam se mobilizar para enfrentar violências e questões que atravessam suas vidas.
O eixo principal do projeto, no entanto, é com as mães cujos filhos e filhas foram vítimas da violência do Estado. A coordenadora conta que são realizadas atividades, como atos públicos com essas mulheres, e destaca os encontros promovidos entre as mães, para que compartilhem suas experiências. “[Os encontros são] para que elas consigam se fortalecer minimamente nesse processo de vida recortada por essa dor, sobretudo porque sempre tem mais mães chegando ao nosso grupo e é importante elas se conhecerem”, diz.
Edição: Alfredo Portugal