O apagamento da luta das mulheres na história motiva a coleção de livros infantis “Mulheres Insubmissas”. Ao todo, 20 volumes vão contar histórias de personalidades brasileiras importantes. Mulheres do passado e do presente que permaneciam ocultas ou esquecidas da vida cultural das pessoas, principalmente das crianças em idade escolar. A proposta é tirar essas histórias do silenciamento e mostrar ao público infanto-juvenil que o lugar das mulheres é onde elas quiserem.
“A coleção é para uma infância grande, a partir de 10 anos. E nasce do encontro de profundos incômodos. Como historiadora, me incomoda até hoje, esse silenciamento histórico das várias formas de apagamento das mulheres na história brasileira”, declara Patrícia Valim, pesquisadora e professora de História da Bahia do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação da UFBA, uma das coordenadoras do projeto, ao lado professora Valeska Zanello, da Universidade de Brasília (UNB).
Ao reconhecer a invisibilidade ideológica das mulheres que acontece na sociedade e também na academia, Patrícia indica que isso se dá não por ausência de fontes, mas porque durante muito tempo foram os homens que, predominantemente, fizeram as perguntas e a escrita da história. “Só muito recentemente que a gente tem uma paridade na narrativa e na produção da história dentro do Brasil. E, ainda assim, nos órgãos de pesquisas, isso não ocorre, o que inviabiliza alguns estudos”, declara Valim.
Ela afirma que, durante séculos e gerações, as meninas nascem, são criadas e pensadas, essencialmente, em razão de dois dispositivos, o materno e o amoroso, como se não houvesse outras possibilidades identitárias para essas meninas, adolescentes e depois mulheres adultas e mais velhas. Provocadas por essa percepção, Patrícia Valim e Valeska Zanello tentam percorrer outros caminhos para valorizar novas interpretações de mundo.
“A gente resolveu juntar e somar os nossos encontros. A primeira etapa desse projeto resultou num curso que durou dois meses e meio, no qual testamos o nosso argumento para escolha das 20 mulheres. Em cada aula, nós apresentávamos discussões acerca de duas delas e, a partir dessa experiência, a gente começou a definir os critérios de escolha”, explica Patrícia ao reforçar que as mulheres escolhidas para a coleção são predominantemente brasileiras.
O projeto tem um cuidado especial com a diversidade regional e busca contemplar lugares de fala e de experiências distintas. “São mulheres brasileiras. Nordestinas, das regiões norte, centro-oeste, sul e sudeste. A gente tem esse cuidado de preservar e de garantir uma diversidade regional grande. A gente teve o cuidado também de pensar mulheres trans, negras, indígenas, brancas, mulheres cis, mulheres hetero, mulheres bissexuais, homossexuais, já reconhecidas e até mulheres desconhecidas”, destaca a pesquisadora.
A opção metodológica busca identificar e reconhecer a riqueza de histórias cotidianas e comuns. A exemplo de uma mulher baiana, de Jequié, do início do século XX. “Ela cria o seu próprio bando no cangaço. Por uma disputa entre famílias na região, parte da sua família foi assassinada, só tinha sobrado a Anésia Cauaçu. Portanto, ela cria um bando de cangaço, antes do Lampião. Ela não é Maria bonita, a mulher de Lampião. Não que isso a reduza, mas veja ela entra na história do cangaço como ‘mulher de’, ‘como esposa de’. Essa é uma das formas, inclusive, de apagamento, da luta das mulheres”, declara Valim ao detalhar como se deu o olhar apurado de curadoria.
Patrícia apresenta ainda Anésia, personagem relevante da história brasileira para validar a sua luta, mas também para evidenciar mais um outro caso de apagamento “Ela foi a primeira a comandar um bando, a primeira mulher a montar a cavalo como homem, era muito falada. Era casada e tinha uma filha. O então marido, médico, fica com a sua filha, e ela vai lutar. Derrota, por duas ocasiões, a tropa federal enviada para matá-la. Ela atirava e cavalgava muito bem, e eles não conseguiram capturá-la. E aí, os contemporâneos, os homens da época deram início ao boato de que ela se transformava em planta. Por isso, ela tinha poderes sobrenaturais, quase demoníaco, de se transformar. Argumento construído por eles para justificar o fracasso em relação à capacidade militar da Anésia Cauaçu”, conta.
Maria Quitéria
Para contribuir com as construções do Bicentenário da Independência, a Coleção vai contar também a história de Maria Quitéria, liderança importante na batalha do 2 de Julho, Independência do Brasil na Bahia. Ela é a primeira personagem da coleção, um livro escrito por Marianna Teixeira, mestranda sob a orientação de Patrícia Valim.
Marianna é historiadora e desenvolve no mestrado uma pesquisa sobre Maria Quitéria e a construção de memória dela nos séculos XIX a XXI. É a sua estreia na escrita de um livro “público”. “É uma estreia no sentido de publicizar uma escrita que, muitas vezes, eu vi restrita a alguns espaços universitários e políticos. Para mim, ter escrito essa obra simboliza muito mais que um alinhamento com o que estou vivendo neste momento na minha vida profissional, é a perspectiva de que essa história de Maria Quitéria de Jesus, das lutas pela independência da Bahia sejam conhecidas cada vez por mais pessoas”, explica Marianna com emoção especial por saber que é um livro voltado para as novas gerações.
Ela destaca que Maria Quitéria sintetiza e revela muitas questões da época dela, mas também da nossa. “Maria Quitéria de Jesus foi uma mulher parda, uma mulher baiana, uma mulher do sertão. Não era uma mulher estudada, mas era uma mulher que tinha coragem. Era uma mulher que, como tantas outras, ousou viver uma vida diferente, uma vida pública. Ela se engajou em uma causa política. Travestiu-se com roupas masculinas, o que era um crime na época, adentrou um espaço predominantemente masculino e proibido para as mulheres”, diz Mariann.
Ela destaca também que é uma liderança que ainda não está presente nos livros didáticos como deveria. “Uma mulher completamente corajosa, transgressora e que pode inspirar os mais novos a olhar a história de forma diferente. A se olhar e a aprender a se reconhecer também nos agentes mais plurais que já existiram no Brasil”, afirma.
Outros nomes
A médica psiquiatra Nise da Silveira e a professora Jaqueline Góes, que coordenou o laboratório de pesquisa que decodificou o DNA da Covid-19 após 48 horas do primeiro registro da Covid no Brasil também estão entre os nomes que terão suas histórias contadas pela Coleção. “A gente está tentando mostrar o grau de organização, de rebeldia e de insubmissão que há nesse conjunto de mulheres ao longo de suas vidas. E que crianças e adolescentes cresçam querendo ser uma arqueóloga, uma liderança política no cangaço, uma comandante dentro das forças armadas”, declara com entusiasmo Patrícia.
Ela reforça também que essa coleção não é para menina apenas. É para meninas, meninos e adolescentes. “A gente entende, que no curto e médio prazos, a gente consegue mostrar outras possibilidades identitárias. Esse tipo de conteúdo, essas histórias, articuladas com questões estruturais do tempo dessas mulheres, acabam funcionando como um letramento, no sentido de respeitar a mulher, de entender que elas lutaram e que de há uma política onde elas foram apagadas”, defende.
Edição: Gabriela Amorim