O sofrimento tem cor, tom, religiosidade, cultura, linguagem e costume diferentes
Que haja em todo acontecimento minha infelicidade, mas também um esplendor e um brilho que seca a infelicidade e que faz com que, desejado, o acontecimento se efetue em sua ponta mais estreitada, sob o corte de uma operação (...). O brilho, o esplendor do acontecimento, é o sentido (Gilles Deleuze).
O que é sofrimento?
O que é sofrimento para um indígena?
Sofrer é tão… subjetivo, em linhas originárias: auto-coletivo, quanto às características que nos fazem ser quem somos. O sofrimento tem cor, tom, religiosidade, cultura, linguagem e costume diferentes. Ele é uma especificidade. Para um indígena, a subjetividade do sofrimento, atrelada à coletividade, tem grande relação com a estrutura e funcionamento cosmológico, com as regras sociais estabelecidas e os diferentes aspectos da organização sociocultural do seu povo.
Pensá-lo (sofrimento) como uma especificidade é também pensar nos atravessamentos coloniais que hackeiam e trazem novas atualizações às experiências do sofrer. É preciso demarcar o sofrimento antes e depois da colonização. Pois, nesta sociedade utilitarista que se instaurou ao longo dos quinhentos anos, a finalidade seria abolir, além do prazer, do conhecimento alegre e da sabedoria aliada ao riso-corpo-território dos povos indígenas, também o desprazer, o sofrimento. Se nos roubam a terra, se nos impedem de chorar nossos mortos, cortam-nos a língua e os rituais fúnebres e trazem-nos o pecado, há uma atualização do sofrimento como estratégia de apagamento:
Chorar a ausência e sofrer com a nova presença.
A catequização, como uma das principais estratégias, usou/usa da culpabilidade, como fruto do projeto civilizatório para fazer com que os indígenas passassem a odiar a "criatura selvagem e mundana" que existia dentro deles. Obrigados, majoritariamente, a abandonar a vida já constituída para “viverem em sociedade”. Originários que contraíram a doença da culpa e foram confinados aos costumes e à moral europeia. Pois, subservientes, expiando a culpa, ganhariam o paraíso.
Mas…
Qual a possibilidade de acolhimento em um ultramundo onde se nega nossa ancestralidade e desvaloriza a vida na terra? Ailton Krenak nos ensina sobre o quão preciso é viver inteiramente o mundo, pisar suavemente e entendê-lo como a mais perfeita realidade. Deixar de modificar este mundo e valorizar o que se tem e não o que se terá transcendentalmente, a custo do progresso exacerbado.
Adorar a terra. Agradecer à terra. Celebrar a terra. Sofrer a terra. Viver a terra. Quem se sacrifica pela terra?
O mal-estar é intrínseco à condição humana, segundo Freud em “O mal-estar na civilização”. É o mal-estar estruturante, constituindo-se como a própria condição do sujeito na cultura. Chorar a ausência e sofrer com a nova presença muito nos diz sobre a relação entre indígenas e a nova cultura, ou melhor, aculturação que causou a desarmonia corpo-território, pois na conversão forçada do que eram fundamentos da cultura que aqui já existia, exterioriza-se a má-consciência, a partir da imposição da fé, costumes, modus operandi colonizador para interiorizar a culpa (sofrer com a nova presença) e a perda (chorar a ausência) como base para o nosso sofrimento. Arrisco-me a dizer que a primeira e pior doença que aqui se instaurou foi a doença do originário contra ele mesmo, sofrendo dele mesmo, por ser ele mesmo.
A estratégia de unificar o sofrimento foi falha desde sua implementação.
A síntese que aqui proponho é: quando a pedra é muito pesada, às vezes, o melhor é descansar, acolher a fraqueza e entender o sofrimento - não romantizado, como uma via que pode tornar-nos mais fortes. Mas também que o sofrimento não é genérico, via única e muito menos utilitarista, quando se espera algo (paraíso?) em troca. Sua percepção varia de povos para povos, de indígenas para indígenas, justamente porque é uma experiência auto-coletiva. O que dói aqui pode não doer lá. Para a Psicologia Indígena, só é possível acessá-lo, tratá-lo, aliviá-lo de uma maneira correta a partir da vivência de quem sofre, criando, assim, portas de entradas e de saídas para o próprio sofrimento. Na medida em que o sofrimento se remete à esfera da cultura, também a sua resolução poderá ser encontrada nesta mesma esfera.
*Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Gabriela Amorim