A legislação brasileira prevê o direito à interrupção de gravidez que representa risco de morte para a gestante, quando se dá em decorrência de violência sexual e em gravidezes de fetos anencéfalos. Nessas situações, o abortamento constitui um direito de meninas, mulheres e pessoas com capacidade de gestar. No entanto, isso não se cumpre efetivamente no Brasil. Na Bahia, a realização do aborto legal encontra diversas barreiras, potencializadas durante a pandemia de Covid-19. É o que indica um estudo realizado pelo Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica em Gênero e Saúde (MUSA) do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da UFBA, em conjunto com o Grupo Curumim – Gestação e Parto e o Ipas Brasil.
O trabalho concentrou as suas observações em três unidades de saúde localizadas em cidades de grande porte do estado da Bahia. Os serviços foram criados a partir dos anos 2000 e estão abrigados em hospitais ou maternidades vinculadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) e que ofereceram o serviço de interrupção legal da gravidez durante os anos de 2020 e 2021. O perfil das pessoas atendidas por esses serviços é, predominantemente, de mulheres jovens e negras que sofreram violência sexual. O estupro é a principal causa de interrupções legais de gravidezes na Bahia e também no Brasil.
O estudo denuncia que há um número reduzido desses serviços no estado. Cenário semelhante ao encontrado também no resto do país. Dos 1.794 municípios do Nordeste, apenas 24 (menos de 2% do total) cadastraram serviços que dão assistência aos abortamentos previstos em lei. A maioria só atende os casos de gravidez resultante de estupro. A desinformação, a centralização dos serviços na capital, a pouca visibilidade dos hospitais e maternidades que abrigam esses serviços e o desconhecimento de direitos são algumas das barreiras identificadas na pesquisa.
O trabalho envolveu dados e informações do Ministério da Saúde, investigação qualitativa nos serviços e a realização de entrevistas com 17 profissionais de saúde. Duas mulheres que escolheram o aborto legal após sofrerem violência sexual, também foram entrevistadas.
Principais entraves
Paloma Silveira é doutora em Saúde Pública e professora, psicóloga e pesquisadora associada ao MUSA/ISC e ao LabEshu (UFPE). Das barreiras enumeradas no trabalho, ela destaca a questão territorial. “As unidades que realizam o procedimento no estado estão localizadas na capital ou em grandes centros urbanos e isso se transforma em uma barreira de acesso às pessoas com capacidade de gestar, que residem no interior e precisam do serviço”, declara.
Paloma salienta também que essas dificuldades evidenciadas na pesquisa já existiam antes, mas foram potencializadas no período pandêmico. A falta de informações e a pouca visibilidade dos serviços favorecem os obstáculos. “Muitas pessoas desconhecem os serviços de aborto legal ou sequer sabem desse direito. Outra barreira relevante se refere à própria estrutura física dos hospitais onde esses serviços estão abrigados. As pessoas atendidas no aborto legal, muitas vezes, são obrigadas a dividir o mesmo ambiente com mulheres em trabalho de parto, puérperas que estão com seus recém-nascidos. Isso foi apontado como um ponto negativo, principalmente para o acolhimento”, declara a pesquisadora.
Silveira vai além na reflexão e problematiza o despreparo dos ambientes ao criar barreiras também para a diversidade. “Não há relatos, por exemplo, de participação da população LGBTQIAP+, no estudo. Isso também é uma barreira. Uma barreira à diversidade de gênero e sexual relacionada a esse acesso ao serviço”, destaca.
Outro ponto que não pode ser esquecido e que o estudo aponta como mais um elemento dificultador refere-se aos limites gestacionais para a realização da interrupção da gravidez. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já recomendou que o limite de prazo gestacional para a realização do aborto nos serviços de saúde seja eliminado. A medida tem como objetivo garantir o acesso ao aborto para as pessoas que estejam no segundo trimestre de gestação e para aquelas que vivem em áreas remotas.
O estudo destaca também a presença da objeção de consciência, que tem se apresentado para além do indivíduo e de forma institucional. Ou seja, proibição baseada em convicção religiosa, política, ética ou moral do indivíduo, como justificativa para que este não cumpra um dever imposto por lei. “Durante o atendimento, as meninas, mulheres e pessoas com capacidade de gestar vão ter o descrédito da palavra quando relatam que a violência é sexual. A desconfiança em relação à palavra dessa mulher, se realmente o que ela está falando é verdade, se realmente aconteceu, indica a falta de uma regulamentação de protocolo mais institucionalizado nas unidades de saúde”, acrescenta Silveira.
Segundo a pesquisa, isso tem relação com o despreparo em atender essas pessoas e se transforma em uma barreira também. “A gente constatou uma formação insuficiente. Uma falta de sensibilização e capacitação desses profissionais sobre atenção ao aborto, o que
contribui para a permanência de atendimento desumanizado e implica em sofrimento desnecessário para as pessoas com capacidade de gestar em um momento de grande fragilidade emocional”, declara Paloma ao destacar mais um ponto de problema identificado no estudo.
O resumo executivo da pesquisa Barreiras de acesso ao aborto legal na Bahia no período da pandemia da COVID-19: 2020 e 2021 pode ser acessado aqui.
Edição: Gabriela Amorim