Chegamos em 2023, e as senzalas seguem sendo reproduzidas nos quartinhos de empregada
Luzia foi surpreendida por um comentário infame enquanto lia um pedaço de papel caído no chão. “Se não sabes ler negrinha para que olhas o jornal?”. Apesar do susto e de ficar apreensiva, Luzia já estava habituada a lidar com esse tipo de insulto e respondeu de pronto: “Sinhá num sei lê, mas acho bunito”. Mas, mãe a senhora sabe ler que eu sei. “Quieta menina!” repreendeu a garotinha num beliscão. Era um misto de sentimentos e pensamentos. Luzia se preocupava em não demonstrar à senhora branca que sabia ler e pensou que a menina quase botaria tudo a perder. Uma vez testemunhou um homem negro ser açoitado porque sabia fazer cálculo, entendeu que fazer-se de ignorante era salvar a própria pele. Ao mesmo tempo se perguntou o que estaria ensinando à filha com aquela atitude. Tudo isso em milésimos de segundos enquanto passava numa encruzilhada. Ela ia a pé para a rua à esquerda com uma trouxa de roupa na cabeça e a sinhazinha à cavalo para a rua à direita. O papel pisado no chão era um pedaço do jornal Gazeta de Notícias anunciando a extinção da escravidão no dia anterior.
E nas casas de chá de qualquer esquina, duas mulheres fidalgas confabulavam o que fariam com os “escravos” que tinham como posses. Uma delas se preocupava com as consequências de contrariar a lei recém decretada, mais do que perder a reputação havia o medo de perder as posses e os títulos. A outra parecia não se importar com os últimos acontecimentos, ao que parece, encontrou um modo de burlar a lei. “Estás louca senhora minha prima. Nós temos serviçais, estão conosco há tantos anos que são como se fossem da família”, respondeu a mulher. As duas se entreolharam como se tivessem criado um pacto silencioso, confirmado pelos gestos. Só interrompido por um comentário de uma delas: “A propósito teus filhos foram estudar na França? Ouvi dizer que melhor seria na Inglaterra ou Estados Unidos, pois quando voltarem, com boas relações políticas, certamente assumirão cargos importantes na República. Estás sabendo das reuniões sobre isso? Militares e civis estão organizando um motim contra o imperador”.
Me pergunto se foi a partir de gestos assim que o nosso racismo, nossa neurose cultural, se construiu. “Ora, sabemos que o neurótico constrói modos de ocultamento do sintoma porque isso lhe traz certos benefícios. Essa construção o liberta da angústia de se defrontar com o recalcamento” (Lélia Gozález).
Agora veja, cara leitora, já deves ter percebido que neste escrito lhes faço um convite para viajar nos tempos em pequenas cenas que dizem muito da nossa história, formação como povo de uma Améfrica e de nossa neurose, o racismo. Daremos um salto do século XIX para o século XXI. O ano é 2015, um enxame de homens brancos e de paletó discutem a legitimidade da Proposta de Emenda Constitucional Nº 150 mais conhecida como a PEC das domésticas. Os argumentos foram tão pífios que parece vergonhoso relembrar. Mas sim, disseram que não havia conflitos ou violência e desrespeito nestas relações de trabalho. E que haveria um aumento estrondoroso no desemprego se a tal PEC fosse aprovada.
Choveu uma porrada de mulheres da classe média e da elite branca deste país nas redes sociais demonstrando sua indignação com a PEC. Utilizaram os argumentos de 1800 e bolinha de que as trabalhadoras domésticas estavam em suas casas cuidando de suas famílias há tantos anos que eram como se fossem da família e que a PEC traria um problema inexistente nesta relação. Até vídeos de como tratar as trabalhadoras domésticas, as sinhazinhas atuais fizeram. Apesar das oposições, a PEC foi aprovada. Mas, segue sendo sabotada por patrões que não aceitam assinar a carteira de trabalho para garantia de direitos destas trabalhadoras, em sua maioria, negras. Por ironia do destino a PEC foi sancionada por uma mulher branca da classe trabalhadora, a primeira a ocupar a presidência no nosso país. Mas, não esqueçamos que este feito resultou do trabalho de mobilização e pressão das trabalhadoras domésticas. Não esqueçamos de Dona Laudelina de Campos Mello, a pioneira em formar um movimento sindical das trabalhadoras domésticas no Brasil.
Chegamos em 2023, e as senzalas seguem sendo reproduzidas nos quartinhos de empregada. Babás e trabalhadoras domésticas, outrora mucamas, seguem sendo açoitadas e escravizadas. Histórias assim até viram episódios de podcast como “A mulher da casa abandonada”, ao menos estas notícias viraram denúncias. Por estas e outras histórias que ainda se repetem da nossa neurose cultural e racial é que precisamos indagar: O 13 de maio salvou a pele de quem?
*Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Gabriela Amorim