Sofrimento psíquico de pretes clares: o paradoxo da cor
Era 2 de fevereiro, como estávamos em isolamento social os feriados não faziam muita diferença na pandemia. O tempo e a materialidade eram outros. Enviei um link pelo WhatsApp e, em instantes, lá estava ela. Uma figura enigmática, franzina e engraçada. A dificuldade de retomar as atividades rotineiras, de escrever e não poder sair de casa lhe angustiava. Esse foi o motivo inicial de ter me procurado. Mas, ao longo dos nossos encontros outras coisas se anunciavam como um nó analítico.
Não saber identificar se era branca, se era negra era uma questão. Diante do que trazia de sua história familiar, eu a via como uma mulher negra de pele clara. Mas, aí me pego reproduzindo o delírio colonizante, em que rapidamente tendemos a categorizar a alteridade pelos olhos, sem deixar espaço para que ela mesma se nomeie. Meu olhar parece tê-la definido e aprisionado-a naquilo que se liga a uma ideia que tenho de representatividade e colorismo. Sem espaço para o vacilo, a dúvida e a abertura. Como poderia eu saber o que ela era, se ela mesma parecia não saber?
A angústia não era só dela, era minha também. Não sabia como acolher alguém que apresenta, ao que parece, uma birracialidade na pele, passível de confundir quem a vê, ou até mesmo a própria sujeita que se vê. Uma perturbação diante das referencialidades raciais bem marcadas em algumas pessoas, sejam elas brancas, negras ou indígenas. A angústia, para Lacan, é este afeto sem representação, sem simbolização, que escapa à cadeia de significantes. Neste caso, o que parece ter escapado como peixe ensaboado foram os significantes negro e branco.
A indefinição da cor angustia diante de um mundo marcado pela definição, unicidade, homogeneidade, universalidade, binarismos, categorias. Nesse mundo é preciso assumir sempre um lado, embora existam vários, somos levadas a escolher uma coisa ou outra. Ser negra, ou ser branca, ser heterossexual ou homossexual e por aí vai.
Em todos os grupos que participa, ela sentia-se como um “peixinho fora d’água”, desejoso de cair em alguma rede de significantes passível de representação ou um cardume que lhe dê um sentido de direção. Um peixinho à deriva na terra, esquecido da mãe sereia, esquecido de que é possível estar dentro e fora d’água ao mesmo tempo. E que as escolhas são como as marés que se movem em diversas direções. Como as ondas que vão e vem, as escolhas são transitórias e não definitivas.
Nordestina da Bahia, filha de pai negro de pele clara que, segundo ela, nega a própria negritude, e de mãe branca, não se sente segura e à vontade para afirmar sua identidade em nenhum lugar. Será o caso de apenas uma identidade? Em análise, tem percebido o processo de branqueamento da família, de apagamento da negritude e da herança indígena. Será que ela espera que o seu pai se diga negro para entender-se também como tal? Foi isso que lhe faltou na transmissão de significantes?
No seu território de origem é lida como branca, mas em outros lugares, fora de lá, é lida como negra. Não é mesmo fácil enegrecer, ainda mais quando o gradiente de cor é o que determina quem é mais negro ou menos negro. E voltar para o seu território, para o aquário, já não era a mesma coisa. Foi preciso sair dele para descobrir-se negra pelo olhar do outro. Seria isto um encontro não esperado com o real, com o afeto que não engana? Com o paradoxo pintado no corpo?
Nota que os grupos que tem participado, a maioria é de pessoas brancas. Acha que sua participação não é valorizada por tais grupos. Na busca por afirmar sua negritude, encontrou um grupo de mulheres negras e escritoras, gostou do que encontrou, mas também não se sentiu pertencente, nem legitimada para falar por ter a pele clara.
Esse peixinho fora d’água habita dois mundos. Um ser dividido mas condenado a ser apenas um por quem olha e por ela mesma. Como na história do chapéu de Exú, orixá que habita as encruzilhadas. Num de seus itans, dois amigos que trabalhavam num campo, dividido por uma estrada acabaram brigando, pois que Exú havia passado pela estrada com seu chapéu que de um lado era vermelho e do outro era branco. Em uma conversa, um dos amigos comentou sobre um viajante de chapéu vermelho. O outro amigo também assentiu ter visto o viajante, porém, este usava um chapéu branco. Ambos permaneceram convictos de suas perspectivas, acirraram a discussão colericamente, acabaram se atracando e matando um ao outro.
A partir deste itan, podemos especular as questões que a racialização nos impõe. Se somos constituídos pelos discursos de nossos pais, mães, antepassados e todos aqueles que nos rodeiam, não há uma singularidade pura. Este Eu é uma comunidade subjetiva. Mas, o que marca nossa entrada na cultura é o Supereu, podemos então inferir que esta instância psíquica que é a lei, que é a cultura, está encharcada pela cultura do colonizador. Não é à toa que o racismo tem estruturado a nossa sociedade. A racialização e o racismo têm sido a lei. E pelas lentes do colonizador, não se pode ser diverso, tem que ser único, idêntico a ele mesmo. A diversidade perturba, causa angústia, o conflito internalizado e externalizado também pode levar à morte simbólica e física de si e do outro.
Estar em nossas casas, isoladas como um peixe solitário num aquário, talvez tenha sido a experiência mais direta que tivemos com o real de modo coletivo. Diante da possibilidade da morte, num contexto diverso colocado pela pandemia, tudo que há é o vazio de significante que faz perguntar quem somos nós, quem temos sido. A pergunta se lança ao campo oceânico das identificações. Mas, era 2 de fevereiro, dia de Yemanjá, mãe cujos filhos são peixes. Era pandemia, mas era dia de sagrada-profana festa entre humanos e peixes.
*Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Gabriela Amorim