Os desafios enfrentados por ser, existir e se afirmar mulher no Brasil é uma luta que acontece todos os dias, mas para as mães que se aventuram a estudar, os perrengues parecem ser dobrados. Conciliar a rotina de sala de aula e de estudos com o cuidar de criança não é tarefa simples. Para universitárias que vivem essa condição ou enfrentam a rotina de mãe solo e sem rede de apoio, manter-se nos estudos beira uma insurgência, uma transgressão aos vetos silenciosos da sociedade e da academia.
Esta é a realidade de estudantes da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) ouvidas nesta reportagem. Presente em Cruz das Almas, Cachoeira, São Félix, Santo Antônio de Jesus, Amargosa, Santo Amaro e Feira de Santana por meio de sete Centros de Ensino, a UFRB afirma manter ações de auxílio às estudantes através do Programa de Permanência Qualificada (PPQ). As estudantes, por outro lado, afirmam que tais ações ainda são insuficientes e não dão conta das reais necessidades delas. Esforços de mudanças são empreendidos por um Coletivo de Mães Universitárias que tenta construir caminhos possíveis para o futuro.
Vinda da comunidade quilombola de Bebedouro, município de Campo Formoso, há quase 420km de Amargosa, Alaine Gama é mãe de Alane Raquel, de 5 anos, e estudante do sexto semestre do curso de Educação do Campo. “O auxílio contempla apenas crianças de 0 a 3 anos e 11 meses, com o valor de R$ 230,00. É exclusivo para mães que comprovem que suas crianças estão matriculadas”, explica Alaine.
“Eu, particularmente, não recebo. Minha filha já está acima da idade, e essa é uma das pautas que abordamos nas nossas discussões: ampliar a faixa etária para que contemple um número maior de mães e crianças”, afirma.
PPQ e creches
A UFRB, fundada em 2005 com o propósito de ampliar os acessos ao ensino superior para além de Salvador, ainda não oferece um espaço, creche ou casa de acolhimento para atender crianças e mães universitárias. Em e-mail enviado ao Brasil de Fato, a Universidade diz garantir o apoio a todas as estudantes, inclusive mães, por meio do Programa de Permanência Qualificada.
“Na UFRB temos o Programa de Permanência Qualificada (PPQ) criado a partir das diretrizes do Programa Nacional de Assistência Estudantil, cuja finalidade é ampliar as condições de permanência dos jovens na educação superior pública federal”, diz um dos trechos da mensagem. A Universidade afirma que, neste sentido, a instituição define a creche como uma das áreas para as ações de assistência estudantil.
“Foi implementado na UFRB, dentro do PPQ, o auxílio-creche, como apoio à maternidade e é efetivado por meio de repasses de recursos financeiros que visam subsidiar as estudantes em suas despesas com filhas e filhos menores de 3 anos, necessárias à manutenção da criança, enquanto estão dedicadas às atividades acadêmicas”, argumenta a UFRB, em texto de email.
As mulheres mães estudantes não estão apenas na UFRB. Há 40 anos, a Universidade Federal da Bahia (UFBA) atende, por meio de uma creche, crianças de 4 meses a 3 anos incompletos selecionadas por critérios de vulnerabilidade socioeconômica. Este ano, serviço que auxilia a comunidade universitária, pais, mães e responsáveis, no atendimento de demandas da própria universidade foi interrompido sem aviso prévio. A Comissão de mobilização de mães, pais e responsáveis por crianças da creche acionou o Ministério Público Federal (MPF) e, depois de quase vinte dias de portas fechadas, as atividades foram retomadas.
De um lado, a UFBA justifica o ocorrido em nota, onde explica que a empresa responsável pela creche rompeu o contrato de forma unilateral. Do outro lado, as famílias que acessam o benefício pedem por mais diálogo com a instituição e reivindica que os 200 dias letivos garantidos pelo ECA e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional sejam garantidos.
Acesso
Na UFRB, as mães estudantes afirmam que, além de insuficientes, as ações do PPQ são de difícil acesso. “A universidade lança os editais todo início de semestre para a participação das pessoas, mas a burocracia é imensa. É muita documentação para comprovar que necessitamos. Sabemos que tem os trâmites, mas é de uma forma que nos desestimula a participar. Parte das estudantes tem filhos acima dos 2 anos e quase não conseguem acessar”, afirma Alaine.
“Aqui no CFP não temos creche, não temos nem mesmo um espaço que acolha os nossos pequenos. A gente chega no banheiro e não tem um fraldário para trocar as nossas crianças. Sentimos que a universidade não foi pensada para nós, mães”, declara Alaine que diz pagar uma conta alta por reivindicar. De olhares feios a palavras ofensivas, nada disso é impedimento para ela plantar e adubar outros caminhos de possibilidades para dialogar sobre as maternidades universitárias.
“Muitas mães já desistiram por não aguentar a pressão. Assim, nos juntamos e estamos em um Coletivo de Mães para batalhar por direitos, reivindicar e fazer com que a universidade nos enxergue”, declara Alaine ao somar forças com outras estudantes que compartilham da mesma realidade. O Coletivo pede também por mais solidariedade e compreensão da equipe docente. “Você é uma péssima mãe. Tem que colocar a sua filha em uma creche. Acorde cedo. Eu quero as minhas atividades: são coisas assim que a gente escuta diariamente”, relembra.
Alaine reconhece que é preciso pensar em um projeto a longo prazo, mas, de imediato, o Coletivo de Mães reivindica, pelo menos, a criação de uma brinquedoteca e a abertura de um restaurante universitário em Amargosa.
Trajetórias combativas
Para Alaine falar da condição feminina, por si só, já é difícil. “Quando se fala de mulher, mãe, preta e universitária, a complexidade é ainda maior. Cada uma dessas condições, acrescentadas à maternidade, intensifica o grau de dificuldade”, afirma a estudante que tenta conciliar essas camadas de existência. “As pessoas nos olham e dizem que uma mãe não deve estudar. Tem é que trabalhar para sustentar o filho. Estudar é pra quem não tem o que fazer”, desabafa Alaine.
Quem também teve que romper com os silêncios para se reinventar foi Evelin Fiuza, estudante do curso de Pedagogia. Nascida e criada na Ilha de Itaparica, Evelin se muda para Amargosa com a filha, exclusivamente, para estudar. Para ela, o seu maior desafio é conciliar a rotina de assistir as aulas e de, ao mesmo tempo, tomar conta da filha.
Com aulas noturnas, Evelin tem levado a filha para a universidade. A criança que hoje tem um ano, frequenta com ela as rotinas de estudos desde os primeiros meses de vida. “Está mais difícil de estudar e de dar atenção a Lis porque, agora, ela está na fase de aprender a andar. A gente tem que acompanhar e ir atrás o tempo todo”, afirma.
Manter-se na aula já é uma tarefa árdua de ser cumprida para a estudante. “Eu só consigo ficar na sala quando a criança está mais quieta ou quando meus colegas ajudam ficando um pouquinho com ela fora da sala”, diz.
A UFRB não sabe dizer quantas mães universitárias existem matriculadas atualmente na instituição. Evelin, no entanto, nos conta que essa não é uma realidade só dela. Já testemunhou mães que trancaram o curso, outras que desistiram de continuar, e reconhece nos espaços acadêmicos muitas mães que insistem e driblam as dificuldades para não desistir dos sonhos.
Com rotina semelhante a de Evelin, Alaine dribla as estatísticas da desistência. Deixar a criança na escola, ir para a Universidade, sair antes do final das aulas para buscar a filha no colégio e ainda pensar em como sobreviver é a agenda de todos os dias. A luta é vida, verbo e ação na confiança em dias melhores.
“A nossa expectativa para o futuro, e eu espero que seja próximo, é que as mães universitárias consigam cumprir com a formação. Nossa luta, enquanto coletivo, é que a universidade nos veja com outros olhos. Que nos acolha e a nos ajude a implementar políticas efetivas que acolham as mães”, afirma Alaine.
Evelin também sonha com uma Universidade capaz de abraçar a realidade materna. “Eu acredito que a universidade deveria criar algo pensado para ajudar as especificidades das mães universitárias. Projetos onde nossas crianças fossem acolhidas durante o horário das aulas”, propõe a estudante com esperanças de que esse desejo possa, um dia, se tornar realidade.
Edição: Gabriela Amorim