Bahia

Retomada indígena

Mantos Tupinambá: a retomada de territórios invisíveis

Os mantos Tupinambá foram levados do Brasil durante o período colonial e estão sendo recriados por Célia Tupinambá

Salvador |
Célia Tupinambá é personagem importante na história da retomada do território físico e imaterial de seu povo - Paulo Lugon Arante/CIMI

Neste Abril Indígena, na semana em que acontece o Acampamento Terra Livre (ATL) 2023, contamos a incrível história da retomada dos mantos pelo povo Tupinambá na Bahia. Glicéria de Jesus da Silva, ou Célia Tupinambá, é filha de Maria da Glória de Jesus e Rosemiro Ferreira da Silva, o Pajé Liro, da aldeia da Serra do Padeiro, município de Buerama, no extremo Sul da Bahia. “Nascida e me criada na aldeia”, como destaca logo no início da nossa conversa, Célia é personagem importante na história da retomada do território Tupinambá da Serra do Padeiro e também protagonista da retomada dos mantos Tupinambá, objetos rituais que foram levados do Brasil para a Europa no período colonial – e ainda existem 11 deles em cinco diferentes países.

As duas retomadas, aliás, estão intimamente entrelaçadas. Célia conta que a ideia de fazer o primeiro manto surgiu em 2005, quando a comunidade estava organizada e se sentia segura no território retomado. “Em 2005, eu pensava: eu preciso agradecer aos Encantados [pela retomada], tenho que dar um presente”, diz Célia.

Até aquele momento, ela e a comunidade da Serra do Padeiro só conheciam os mantos pelos cantos que sobreviveram na memória coletiva do povo Tupinambá. “O índio subiu a serra todo coberto de pena. Ele foi, mas ele é. É o rei da jurema”, ecoa o cântico pela serra retomada.

Célia começa a tecer o primeiro manto com algumas indicações que seu pai, Pajé Liro, havia lhe dado. Nesse período, a pesquisadora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Patrícia Navarro, chega à aldeia para ministrar um curso de História e Antropologia, levando consigo um velho retroprojetor que foi fundamental para a tecitura do primeiro manto.

Na aula, Patrícia projeta na parede uma imagem de um dos mantos que está em Kopenhagen. Célia conta que foi um divertimento, ela e seus colegas de turma brincaram de vestir-se no manto projetando-o sobre seus corpos. “Pro nosso corpo absorver a imagem mesma, sabe?”, conta rindo como quem fala de uma traquinagem de crianças.


Os mantos tecidos pelas mãos de Célia já estiveram em diversas exposições pelo país / Divulgação/Fligê

O manto ficou pronto para a festa de São Sebastião, em 19 de janeiro de 2006, e foi entregue ao Encantado. Segundo a própria Célia, aquele primeiro manto foi feito de forma muito diferente dos que viriam depois, quando ela conseguiu ter contato com os mantos preservados (ou seria apropriados?) em museus da Europa.

Naquele momento, ela pede ao Encantado que lhe abra a mente e mostre os caminhos para tecer novos mantos. Como resposta, recebe um balde de água fria, em seu próprio dizer. “Ele me diz ali: tudo a seu tempo. Se aquiete. E eu, jovem, querendo tudo para agora, desisti de botar energia nisso”.

Outros mantos

Pouco tempo depois, ela recebe um convite para colocar esse manto na exposição Primeiros Brasileiros, que iria acontecer em Fortaleza (CE), em 2007. Ela explica a João Pacheco, do Museu Nacional da UFRJ, responsável pelo convite, que o manto já fora entregue ao Encantado e que não pode decidir sobre isso sozinha. Célia, então, vai consultar os Encantados sobre a possibilidade de expor seu manto.


O segundo manto tecido por Célia foi para seu irmão, o cacique Babau / Célia Tupinambá

A resposta a surpreendeu. “Ele disse: pode levar, mas com a condição que você faça mais três mantos. Ué? Mas não me mandou esperar, disse que tudo a seu tempo, e de repente, não passou nem uma semana, me manda fazer mais três mantos?”, conta divertida. A espera, Célia ainda não sabia, viria a seguir.

Mesmo tendo recebido a sagrada incumbência, Célia não conseguiu produzir nenhum novo manto pelos anos que se seguiram. Em 2019, ela é convidada pela pesquisadora da Universidade Federal da Bahia Nathalie Le Bouler a ministrar uma palestra sobre os Encantados na França. Nesta viagem, que fez com sua sobrinha Jéssica, ela pôde visitar um dos mantos Tupinambá que se encontra na reserva técnica do Museu Quai Branly.

“Quando eu entro nesse lugar, vou para outra dimensão. O manto estava lá me esperando. Eu entro num estado que chamo de cosmoagonia”, conta. Nesse estado de cosmoagonia, Célia conta que vê imagens trazidas pelo manto. “Eu sinto a areia nos meus pés, a textura da pena nas minhas mãos, eu sinto aquele ambiente”, ao mesmo tempo, ela mantém a atenção do presente na tecitura da malha que compõe o manto e tenta apreender o máximo sobre nós, amarrações, formatos, etc.

“Eu continuo ali, sentindo a energia feminina do manto, que me lembrava minha madrinha, me lembrava as mulheres que tecem o cordão do algodão. E falei: esse manto aqui é feminino, ele foi feito por mão de mulher. Ele estava me mostrando o lugar de onde ele saiu, de uma vida antes do contato [com os europeus]. Ele viveu em ritual!”, explica Célia.

De volta ao Brasil, Célia fica sabendo que seu irmão, o Cacique Babau, irá receber o título de Doutor Honoris Causa na Uneb, e se propõe a tecer para ele um manto a ser usado na cerimônia. A sua primeira tentativa de tecer a malha que receberia as penas acabou sendo picotada pelo seu filho. “Ori é um menino muito tranquilo. Quando eu questionei, ele me falou: mãe, a tesoura falou comigo”. Naquele momento, Célia entendeu que estava tecendo errado.

Em março de 2020, ela vai para a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) falar sobre os artefatos Tupinambá. Na aula, o professor Augustin de Tugny apresenta as imagens dos 11 mantos que se encontram na Europa. Para Célia, uma grande surpresa, pois até então ela só conhecia o manto que estava na França. “Eu falei: meu Deus, quanta riqueza pra gente! Eu preciso ouvir esses mantos!”.


Cacique Babau, irmão de Célia, veste um dos mantos Tupinambá, enquanto segura seu diploma de doutor Honoris Causa pela Uneb / Divulgação/Uneb

Ela pede ao professor Augustin para aproximar a imagem e, assim, consegue ver o ponto em que ele é tecido. “Dava para entender que era o ponto do jereré! E minha madrinha faz esse ponto, lá em casa, no meu quintal! Esse ponto está guardado na memória das mulheres”. O jereré, explica Célia, é um artefato utilizado para pesca, feito em malha de cordão, assim como o manto Tupinambá.

Obviamente, Célia pede a sua madrinha que lhe ensine esse ponto de tecitura. Mas recebe como resposta: “Você já sonhou? Eu respondi que sim. E ela me disse: então, já está dentro de você. Pode voltar pra casa e fazer”. Ela conta que realmente saiu de lá com a sensação de que conseguiria fazer. Em casa, ela entra novamente em estado de cosmoagonia e encontra soluções para os problemas que vão se apresentando durante a tecitura e, assim, consegue terminar essa estrutura primeira.

O processo de conseguir todas as penas, conta Célia, é sempre coletivo: toda a aldeia se envolve. Sua mãe lhe trouxe muitas penas das galinhas que cria, as crianças também trouxeram suas contribuições. “A comunidade começou a se mobilizar, os passarinhos também doaram as penas e aí, então, esse manto foi construído com todo o território”, explica.

Nesse processo de retomadas, do território e dos mantos, Célia conta que passou a perceber que o feitio do manto possibilitava também a recuperação da língua, das memórias, de outros saberes que haviam sido silenciados ao longo da história da colonização.

Majé

O manto produzido a seguir e que costuma ser colocado nas exposições a que Célia é convida a participar é o manto da majé, uma pajé mulher. “Esse manto traz a linguagem do despertar da mulher indígena. Eu vou trazer a majé porque ela foi invisibilizada, foi apagada da história”, explica. Célia acrescenta que primeiro percebeu a existência da majé ao observar as mulheres indígenas que são cuidadoras, conhecedoras das ervas medicinais, da parteria, benzedeiras e curandeiras.


Manto da majé em exposição na Festa Literária de Mucugê (BA) / Divulgação/Fligê

Ela conta que também passou pelo processo de espera cuidadosa de que o manto se apresentasse na feitura do manto da majé. “Não sou eu quem faço o manto, é ele quem se faz. Ele é a própria entidade!”, explica. Ela segue estudando e buscando os rastros históricos dos mantos levados embora. E encontra uma xilogravura de 1555 em que se pode ver uma mulher com um manto sobre as costas, amamentando um bebê e recebendo uma pena de uma outra criança pequena.

Tempos depois, Célia tem acesso a outros estudos acadêmicos que trazem imagens e descrições do uso dos mantos pelas mulheres Tupinambá e consegue também visitar o manto de Kopenhagen, onde também estão guardadas flautas feitas de ossos das pernas dos inimigos abatidos e utilizadas em rituais Tupinambá. “As mulheres usavam os mantos, sim, eram essas mulheres que faziam os partos, que faziam a iniciação da menina moça pra virar mulher e, em vez de ser pajé, elas eram as majés”, explica. E acrescenta que ficou muito feliz por acessar esses estudos que comprovam o que Gavião e outros pássaros já haviam lhe contado.

“Quem nos orientava, nos guiava era o manto. Então, o colonizador tira o manto e essa população está toda descoberta. Mas o manto sempre volta para casa. E ele voltou de outra maneira, mesmo sem o repatriamento”, argumenta Célia. Embora todas as tentativas anteriores de repatriamento dos mantos que se encontram na Europa tenham sido infrutíferas, Célia aponta que a feitura dos novos mantos, em um processo longo e cheio de intervenções dos Encantados, foi a forma possível de reviver os mantos para o povo Tupinambá.

Quem é Célia Tupinambá

Célia conta que está no movimento indígena desde 2002. Foi professora na área de retomada por 20 anos. Em 2010, nas lutas pela retomada do território, Célia foi presa com seu filho de apenas dois meses. Em 2015, juntamente com Cristiane Pankararu, realiza o documentário Voz das mulheres indígenas. Desde então, segue utilizando o audiovisual como amplificador da voz das pessoas indígenas.

Em 2019, Célia discursou durante a 40ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Em 2021, realizou a exposição Kwá Yepé Turusú Yuriri Assojaba Tupinambá (Esta é a Grande Volta do Manto Tupinambá), em Brasília. Atualmente, cursa o mestrado em Antropologia Social no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Em 2023, participou do Programa de Estudos “Saberes em convívio: o que eu não vejo também existe” da Pivô Pesquisa e da exposição Entre Nós: dez anos da Bolsa Zum/Instituto Moreira Salles.

 

Edição: Alfredo Portugal