Ovos de Páscoa que fazem a diferença na saúde de quem come e também da natureza. Da qualidade do achocolatado, à forma como se organizam para a realização do trabalho, assim nasce a experiência de produção de cacau e chocolate agroecológicos, no assentamento Dois Riachões, em Ibirapitanga (BA). Tudo produzido de maneira artesanal e cuidadosa, em todas as etapas do preparo, pelo Movimento Estadual dos Trabalhadores Rurais Assentados, Acampados e Quilombolas (CETA).
Dispostos a criar não apenas um bom chocolate, mas também um novo modelo de produção baseado, inclusive, na defesa do território – ou seja, defesa da água, da terra e da mata. Os trabalhadores assentados do CETA entendem agroecologia como sinônimo de todos esses processos de defesa de luta. “Se no modelo de produção da sociedade, explora-se os trabalhadores, nós precisamos contrapor de outra forma. E essa contraposição é produzir esse cacau diferenciado, que oferece para os trabalhadores organizados, a partir do movimento CETA, a possibilidade de propor uma outra forma de viver”, explica Clodoaldo Oliveira, camponês, assentado da Dois Riachões e militante do CETA.
Chocolate de verdade
Os investimentos na produção de cacau se projetam como tentativa de ser uma experiência “modelo”, capaz de aliar tanto a questão econômica, com geração de renda para a comunidade, como também comprometida com a questão ambiental e agroecológica. A chocolatiê Iracilda Alves Neres, assentada do CETA, garante que, desde o início, a Dois Riachões sempre trabalhou de forma agroecológica, visando o bem-estar tanto do produtor e do consumidor, quanto da natureza.
“No ano de 2018 se iniciou a produção de cacau de qualidade. Em 2019, começamos a nossa produção de chocolate orgânico de qualidade”, relembra. A militante do CETA destaca que dentro do assentamento sempre foi proibido o uso de adubos químicos e queimadas. “Nosso cacau é cultivado na cabruca, debaixo da mata. Dessa forma, produzimos sem agredir a natureza”, declara Cida, como é carinhosamente chamada.
Ela que é uma profissional certificada organicamente pela Rede de Agroecologia Povos da Mata (BA) tem grande satisfação com o trabalho realizado e com o produto final que chega às pessoas. “Levamos produtos limpos para a mesa de todos. Para nós, agricultores da agricultura familiar é de grande importância o reconhecimento dos nossos produtos que são comercializados através de feiras orgânicas, em circuitos longos e curtos e venda direta ao consumidor”, declara Iracilda.
Cida afirma que este é o primeiro ano de produção de ovos de chocolate e a expectativa é muito grande pelos resultados. “Agora, é Páscoa e já estamos nos preparando para nas próximas datas comemorativas ofertar novamente o nosso chocolate. Chocolate de verdade”, declara, com alegria e orgulho.
Sem qualquer dúvida sobre as colheitas econômicas de todos os produtos gerados por eles, Neto reconhece que essa produção impactou diretamente no bolso dos trabalhadores que perceberam a vida ser melhorada, a partir dos ganhos dessa produção. Ele nos diz que, em 2009, a renda per capta familiar no assentamento era de R$ 88. A partir da produção vinculada aos mercados institucionais e à variedade produtiva, em 2012, eles saem de uma renda apertada, na faixa de R$ 80 a 100, para uma renda per capita de R$ 450 até R$ 500. “Em 2016, essa renda per capita chega a ultrapassar um salário mínimo e, em 2020, ultrapassou o equivalente a dois salários”, celebra Clodoaldo.
Ovos de Páscoa da Resistência
Não há como falar dessa produção de chocolate, dessa experiência, sem remontar o nascimento da produção de cacau agroecológico no assentamento Dois Riachões. Para entender como esse processo de luta pela posse da terra culminou com o plantio do cacau até a venda do chocolate, Clodoaldo nos conta que a fazenda Dois Riachões nasce em 2000. Quando entre 40 e 60 famílias ocupam a propriedade improdutiva de uma das grandes latifundiárias da região cacaueira.
“Aqui, na Dois Riachões foram cinco anos acampados na beira da estrada, trabalhando em regime de escravidão para os outros”, relembra Clodoaldo, ou melhor, Neto, como é mais conhecido. Em maio de 2007, esses trabalhadores, organizados pelo Movimento Ceta, decidem ocupar a então fazenda que hoje é o assentamento Dois Riachões legitimado pela sua emissão de posse em 16 de junho de 2018. “Uma das poucas áreas no Brasil a ser reconhecida e a ser emitida a posse”, comemora Clodoaldo.
A ocupação envolveu três etapas importantes para o Movimento CETA e que compreendia o processo de libertação dos trabalhadores. Clodoaldo, que também é assessor popular Centro de Estudo e Ação social (CEAS), destaca que o primeiro passo foi acampar. O segundo, adentrar a terra, e o terceiro, produzir. O chocolate e o cacau de qualidade não estavam nas expectativas. O sonho maior, naquele momento, era sair das margens da estrada onde estavam vivendo em condições sub-humanas. “A gente queria sair, na verdade, desse modelo de desenvolvimento de sociedade assistencialista, para viver a partir do nosso trabalho com a terra”, afirma Neto, orgulhoso.
Relações humanas e trabalhistas fundamentadas no trabalho coletivo são prioridade na forma de produção do CETA. Dentro deste contexto, a partir de 2007, a Dois Riachões e as produções de cacau e chocolate começam a ganhar força. “A gente estava na terra e era preciso, naquele momento, reinventar a lógica produtiva, econômica e social que éramos colocados. A lógica de que os trabalhadores precisavam ser escravos de atravessadores, daqueles que compram cacau. A gente só trabalhando e servindo a eles”, relembra Clodoaldo. Ele afirma que a elite agrária brasileira, para não ser penalizada pela escravização criada por eles, cria um arcabouço jurídico chamado de contrato de parceria agrícola, que, segundo o militante, nada mais é que um processo de escravidão moderna.
Visionários de um cultivo rico e diverso, os assentados e assentadas começam a trabalhar em mutirões para diversificar a produção que até então era só de cacau. “Você não tinha outras produções porque a cultura dos Barões Cacaueiros proibia os trabalhadores de terem hortaliça, tubérculos, raízes”, afirma Clodoaldo ao reconhecer que eles, assentados de reforma agrária, foram os criadores dessas ferramentas e mecanismos.
“O cacau não tem que ser nossa fonte de renda, tem que ser a nossa poupança. Nossa fonte de subsistência precisa ser de outros alimentos. A gente começa a diversificar a produção com esse pensamento, e o processo começa a ganhar corpo com o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) que foi fundamental para isso”, declara Neto.
Cria-se o curso de Agropecuária, em Barreiras, considerado o cinturão verde da Bahia, e a perspectiva filosófica de uma grade curricular com discussão sobre o processo de formação voltado para a agroecologia estimula a ida de quatro jovens dessa região para estudar. “Saem dois daqui da Dois Riachões e esses dois sujeitos que ainda eram pré-adolescentes, hoje, fazem parte desse processo de liderança formada a partir do que o Estado ofereceu”, explica Clodoaldo.
É a partir desse conhecimento acadêmico adquirido em Barreiras e aliado com a experiência e prática social dos trabalhadores organizados que eles entram em produção. “O chocolate era um negócio de outro mundo. Nós nunca sonhávamos em produzir chocolate, mas quando a classe trabalhadora tem a oportunidade de decidir os seus próprios caminhos, ele vai muito mais a fundo”, afirma o assentado do CETA.
Teoria e prática juntas foram os ingredientes do sucesso desses trabalhadores que formam dentro do assentamento toda a cadeia produtiva do cacau. Hoje, com o domínio de produção de até cinco produtos. “A gente chama de cacau Agroecológico, de alta qualidade, com selo orgânico”, declara Clodoaldo ao reconhecer o ovo da Páscoa feito e nascido na fábrica que a associação se propôs a construir sem nenhum arranjo e sem nenhum investimento do estado. “É uma associação nossa, dos trabalhadores. Fomos lá no banco, pegamos um financiamento e aplicamos na fábrica. Alguns doaram amêndoas para serem vendida, outros doaram recursos e a gente conseguiu essa pequena fábrica, que já é um modelo, apesar de pequena do ponto de vista artesanal”, diz.
Movimento CETA
Há 27 anos, o Movimento Estadual dos Trabalhadores Rurais Assentados, Acampados e Quilombolas (CETA) vem atuando na Bahia pelo acesso à terra, através da luta pela Reforma Agrária, e conta com a parceria do Centro de Estudos e Ação Social. Além da terra, a defesa do território, dos bens comuns e da agroecologia são as bases para a atuação política nas comunidades, fomentando a participação da juventude e das mulheres, a autonomia econômica das famílias e a soberania alimentar.
No contexto imposto pela pandemia da covid-19, além desses princípios e linhas de atuação, o CETA incorporou com mais força a proposta de aliança entre trabalhadoras/es e comunidades do campo e da cidade, a partir dos laços de solidariedade e das ações de combate à fome e defesa da vida.
Edição: Gabriela Amorim