Bahia

Resistência indígena

Cacica Cátia Tupinambá: “Ainda ouso ter um sonho: Quero morrer de velhice!”

Enfrentando ameaças há duas décadas, Cacica Cátia fala sobre a luta pela dos Tupinambá de Belmonte (BA)

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Cacica Cátia, liderança do povo Tupinambá de Belmonte (BA), foi incluída no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos em 2017 - Secretaria de Justiça da Bahia

A conversa com uma das poucas cacicas hoje no país, Cátia Tupinambá de Belmonte – nome de luta de Maria do Carmo Querino de Almeida, liderança da Aldeia Patiburi (BA), de 52 anos –, ocorreu numa noite de sexta-feira, em meio a muitos de seus compromissos, desde políticos a questões familiares e mesmo assuntos operacionais da terra indígena. É uma agenda comum de defensoras e defensores de direitos humanos, como ela. Com olhos cansados e mesmo assim disposta, a cacica tenta se mostrar otimista: “Eu estou bem e as coisas estão caminhando do mesmo jeito, né? Não pode dizer que está tudo muito tranquilo porque faz parte do processo. Não tem jeito”.

O território Patiburi fica no extremo sul da Bahia. Em janeiro de 2022, fortes chuvas na região quase deram fim a toda plantação que garantia a sobrevivência de dezenas de famílias. Mais um desafio para a população indígena de Belmonte, que há anos vêm enfrentando as ameaças do avanço da fronteira do agronegócio e dos megaprojetos. A tensão, que se arrastava por décadas, se intensificou depois da morte do filho de Cátia, em 2014, em um acidente ainda não esclarecido.

Desde então, a defensora à frente da aldeia há quase duas décadas vem enfrentando ameaças mais incisivas. As várias tentativas de silenciamento levaram a cacica a acionar e passar a ser protegida desde 2017 pelo o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH). “Foi um momento crucial. Naquele ano, estava tudo planejado pra tirarem a minha vida”, conta. A cacica só sai da Aldeia Patiburi com escolta policial.

Os episódios persistem, ao menos, desde o início dos anos 2000. Em 2005, uma liderança indígena desapareceu no Rio Jequitinhonha, próximo à aldeia. Nove anos depois, o filho de Cacica Cátia foi morto em um atropelamento nunca elucidado. Em fevereiro de 2019, seu enteado desapareceu. Em 2017, o Centro de Cultura da aldeia foi incendiado, roças foram destruídas e houve uma tentativa de atear fogo na casa da cacica. No ano seguinte, a Justiça Federal chegou a emitir uma reintegração de posse contra os indígenas, expulsando cerca de 50 famílias de seus territórios.

Em março de 2019, seu enteado, Deivid Santos, com 32 anos à época, desapareceu. Naquele ano, a Justiça Global acompanhou a visita do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) ao território, ao lado da Secretaria de Justiça. Meses depois, a cacica recebeu a homenagem Maria do Espírito Santo Silva - Pela valorização das defensoras de direitos humanos, premiação realizada pela organização de direitos humanos Justiça Global, reconhecendo seu papel e potência.


O filho de Cacica Cátia morreu em um acidente nunca explicado. Anos depois, seu enteado desapareceu também sem explicações / Ministério Público da Bahia

O último ataque foi em novembro do ano passado. Na madrugada do dia 23, pistoleiros dispararam contra casas da aldeia enquanto todos dormiam. Felizmente, ninguém ficou ferido. O caso foi registrado pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia, mas ainda não foi solucionado. Em nota, a SSP informou que reforçou o patrulhamento e afirmou que instalou uma força tarefa na região, “promovendo reunião envolvendo a Funai, órgãos federais, indígenas e fazendeiros, e espera, que o mais breve possível, as instituições responsáveis pela demarcação de terras resolvam o impasse”.

O agro versus as vidas

As violações contra os tupinambá giram principalmente em torno dos interesses de uma família de fazendeiros do Espírito Santo– a Souza Ceolin. Tradicionalmente pecuarista, a família também cultiva cacau e outros vegetais, ao menos, desde 2011. Desde que a Souza Ceolin passou a se interessar pela região de Belmonte, as lideranças indígenas notaram uma mudança de postura nos fazendeiros locais que, até então, não confrontavam os indígenas. “Os fazendeiros de grandes latifúndios começaram com uma tentativa de novamente expulsar os povos que ali sempre existiram. Essa tentativa já chegou a quase exterminar os Tupinambás. Mas a gente não achava que fosse chegar onde chegou”, lamenta.

O pecuarista e administrador dos negócios, Vandelei Ceolin, chegou a ser candidato a vereador pelo PMDB, em 2004, e pelo PCdoB, em 2008. Ele e sua esposa, Milena Mota Ceolin, são sócios do Grupo MVC, de concessionárias de veículos da Fiat,  e da empresa Midas Comércio, Importação e Exportação, ambos com sede em Linhares (ES), além da VC Serviços Administrativos, em Ilhéus (dados obtidos via Portal da Transparência com apoio da ferramenta Cruza Grafos, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo - Abraji). O sobrenome de Ceolin também assina Stile Serviços Automotivos e a RR Agronegócios (que cultiva café, cacau, pimenta-do-reino e seringueira, além de criação de bovinos para corte).

Com instrumentos para proteger sua vida, a liderança, no entanto, passou a sofrer tentativas de criminalização. “Quando os envolvidos viram que, se acontecesse alguma coisa comigo, eles não iriam ficar impunes, porque aí já havia se tornado uma situação de nível nacional, articularam para que eu fosse presa por roubo de cacau, do nosso próprio cacau. E isso quase aconteceu, se não fosse a intervenção de órgãos do estado”. As tentativas de desmoralização são constantes e têm como principal alvo a liderança da aldeia Patiburi. “Eles entendem que se eu não estiver ali as coisas ficam fáceis, eles voltam a tomar uma terra que não é deles”.


A aldeia Patiburi, onde vive a Cacica, ainda aguarda a demarcação definitiva do território / Secretaria de Justiça da Bahia

As contínuas provocações, explica Cátia, ocorrem em forma de acusações e recados dados por pequenos produtores e ribeirinhos, com intenção de causar indisposição com seus vizinhos indígenas. “E nós percebemos que não são deles mesmo. É uma discussão sem nenhum fundamento que, por vezes, quando vamos à delegacia, vemos que não tem fundamento”.

Ainda em 2020, os noticiários locais destacavam a detenção de um homem, supostamente contratado por um fazendeiro, que usava um drone para espiar a terra indígena, capturando fotos da casa de Cátia. Meses depois, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) deu parecer favorável para que o povo Tupinambá continuassem a ter acesso a lagos, lagoas e à margem do Jequitinhonha, frente ao pedido de proteção à posse dos trechos próximos à Fazenda Três Lagoas, da família Souza Ceolin.


Estratégias

Há tempos a aldeia Patiburi não experimenta mais um clima de tranquilidade. A paz pode ser retomada com apoio de um documento, que está na mesa da presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). O processo administrativo junto à Funai, iniciado em 2017, aguarda apenas a portaria declaratória para finalizar o processo de demarcação.

O clima de hostilidade virou rotina na comunidade, com relatos de homens armados na outra margem da lagoa de subsistência dos Tupinambás. “Adotamos uma postura diferente que nós nem sabíamos que precisaríamos um dia. Que foi deixar de fazer algo, deixar de fazer um trabalho do dia a dia por medo, deixar de pescar por medo de levar um tiro”, conta.

Os Tupinambás têm buscado estratégias para salvarem suas vidas, recuando sempre que possível. A estratégia do outro lado, porém, é de continuar com as agressões e provocações,  na tentativa de ter margem para criminalizar o movimento. "A gente tem buscado deixar por conta da justiça. Continuamos acreditando. E os nossos processos têm sido vistos e têm sido julgados. Isso tem feito também uma diferença enorme. Porque deixamos de usar a força, né?”. A postura tem sido uma tentativa de evitar mais mortes e mesmo um esgotamento da força política.


Novos desafios

Em 2019, os Tupinambás de Belmonte precisaram recorrer à Secretaria de Segurança Alimentar do Estado depois de um boicote do comércio, o qual acreditam ter sido promovido pelos grandes fazendeiros da região. Sem conseguir  vender farinha e cacau, a subsistência da aldeia ficou ameaçada. “Havia um embargo, e os comerciantes não podiam comprar. Muito menos vender. Tudo isso de uma forma muito discreta. Mas quando os compradores de mais de década se negaram a ficar com o cacau, desconfiamos”, conta. Outras vezes, as próprias plantações de cacau foram saqueadas.


A aldeia só passou a ter energia elétrica em 2020, após longo processo judicial / Secretaria de Justiça da Bahia

Somente em 2020, após um longo processo judicial, é que a aldeia teve acesso a energia elétrica. Logo em seguida, veio a pandemia de Covid-19, que vitimou o companheiro de Cátia. No ano seguinte, as enchentes causadas pelas fortes chuvas no sul do estado comprometeram a fonte de renda e as plantações da comunidade. À época, a cacica Tupinambá se manifestou em uma carta pública alertando sobre as dificuldades enfrentadas na aldeia a fim de mobilizar recursos.

Enquanto o processo de demarcação do território não é concluído, a situação na Aldeia Patiburi ganha contornos cada vez mais complexos. A cacica, por exemplo, denuncia uma autorização obtida recentemente pelos fazendeiros para pesquisar e explorar minério na área da comunidade, a contragosto dos povos indígenas do território. “Isso é um risco pra comunidade! Vai causar um impacto muito grande se acontecer.” Atualmente, a cidade de Belmonte tem cinco grandes empreendimentos mínero-industriais para exploração de jazidas, em especial de areia silicosa, de acordo com a própria gestão municipal.

Apesar disso, Cátia diz ter confiança no processo judicial e espera que o projeto, que ainda precisa da análise do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA/BA), não seja autorizado. O município tem atualmente três unidades de conservação com foco na preservação da Mata Atlântica, sendo uma a Reserva Extrativista de Canavieiras.


“É assim e a vida segue dessa forma”

Cátia, que é formada em Magistério Indígena e Assistência Social, sente que as ameaças ganham um tom mais agressivo quando tentam atingi-la por seu gênero. “O recado, digamos assim, é dizendo que o tiro que não dá no homem, dá na cara de uma mulher. Essas são as palavras. Como se fosse mais fácil caso eu fosse homem. Mas sou uma mulher… E isso traz um ódio muito grande. Como se, por ser mulher, eu não pudesse defender a minha família, o meu povo. Aí eu tenho que ser marcada pra morrer e de uma forma violenta pelo fato de ser mulher”, relata.

Em meio a esse clima de terror, Cátia tem buscado tirar forças de onde pode para continuar lutando. “Eu não sei até que ponto eu vou resistir. Vai acumulando e não é terapia que resolve. Você precisa ter paz, tirar aquilo que está te doendo e que amanhã vai voltar algo que vai doer mais ainda. Ver a comunidade também nessa situação traz uma carga muito grande… a ponto de você começar a não fazer mais planos. Eu faço planos porque eu tenho a ousadia de dizer: nasci mulher e vou morrer lutando. Ainda ouso ter um sonho, né? Quero morrer de velhice. É assim e a vida segue dessa forma”, declara.

Em abril de 2022, a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia fez uma reunião com com 12 lideranças indígenas do estado, incluindo os representantes do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba), para tratar de proteção contra invasões, perseguições e assassinatos. O encontro terminou com a proposta de que a pasta articulasse com a Secretaria de Segurança Pública ações para reduzir a vulnerabilização desses povos.

Segundo o Ministério dos Direitos Humanos, a Bahia era a unidade federativa com o maior número de pessoas incluídas no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPPDDH) em 2022, entre os 11 que têm a política pública regulamentada. Mais de 82 defensoras e defensores são amparados, dos quais ao menos 55 lideranças indígenas. Em todo o país, são 456 pessoas assistidas.

A Justiça Global e a Terra de Direitos publicaram conjuntamente dois relatórios analíticos sobre o PPPDDH. A primeira, Começo do fim? O pior momento do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas, de 2021, já denunciava preocupação com a implementação da política no Brasil, diante da baixa execução orçamentária e da falta de participação social e transparência, entre outros problemas.

No final do ano passado, a pesquisa Olhares críticos sobre mecanismos de proteção de defensoras e defensores de direitos humanos na América Latina aprofundou a questão, com uma comparação entre Brasil, México, Honduras e Colômbia e a sistematização dos dados relativos à política. O estudo aponta para um enfraquecimento do programa no Brasil, intensificado durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), que não avançou para a transformação do programa em uma política de Estado, editou uma série de decretos e portarias que não resolveram a ausência de participação popular na formulação da política, criou mais burocracias e sobretudo afastou o programa de sua missão de articular políticas necessárias à superação das causas das ameaças. Além disso, as novas portarias mudaram fases e critérios para inclusão de pessoas no Programa, além de alterar a coordenação do PPDDH e a composição do Conselho Deliberativo (Condel), que agora é composto de forma não paritária – o que resulta em
fragilização da participação social na execução da política.