Bahia

Direitos Sexuais

Laqueadura: "só a mudança na legislação não vai garantir acesso", afirma especialista

Denize Ornelas, médica de família, especialista em educação, saúde e terapia sexual, conversou com o Bdf sobre o tema

Salvador |
Denize Ornelas destaca a fila de espera por cirurgia no SUS como um dos empecilhos ao planejamento reprodutivo - Luiz Silveira/Agência CNJ


Mulheres livres e com autonomia de escolha e de decisão sobre os seus próprios passos e também sobre os seus corpos. Essa frase parece óbvia, mas até o ano de 2022 para  decidir e realizar a esterilização cirúrgica, ou seja, para fazer a laqueadura tubária, procedimento que garante à mulher o direito de não reproduzir e de não ter filhos, a mulher precisava do consentimento e da concordância do cônjuge.

Isso vale também para a condição contrária, quando é o homem quem decide fazer vasectomia, no entanto, em uma sociedade regida por valores patriarcais, o peso ainda recai quase que exclusivamente sobre as mulheres. Por isso, aproveitamos o março das mulheres, para informar, destacar e trazer as mudanças na Lei do Planejamento Familiar que foram atualizadas no ano passado e passam a valer neste mês.

Para falar deste tema e informar a população baiana sobre o assunto, a repórter Vania Dias, do Brasil de Fato Bahia, entrevistou a médica de família e comunidade, mestre em Saúde da Família pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e especialista em Educação, Saúde e Terapia Sexual pelo IEPOS-Hospital Pérola Byington, professora convidada e membro da Rede Médica pelo Direito de Decidir – Doctors for Choice/Brasil, Denize Ornelas.

Brasil de Fato Bahia – A Lei 14.443, de 2 de setembro de 2022, diminui a idade mínima de mulheres e homens para realização de esterilização e exclui da legislação a necessidade de consentimento expresso de ambos os cônjuges para o procedimento. Essa mudança tem um grande impacto no Planejamento Familiar? Qual a sua opinião?

Denize Ornelas: Em termos de planejamento reprodutivo, a mudança que a Lei 14.443, de setembro de 2022 traz em relação ao planejamento familiar é, sem dúvida, a ampliação do público. Agora, a partir dessa redução de 25 para 21 anos, mais pessoas poderão ter acesso à opção de laqueadura ou vasectomia – também conhecida como esterilização cirúrgica. A ampliação é favorecida também porque as pessoas que vivem em um relacionamento e que possuem um cônjuge, passam a não precisar mais do consentimento dessa pessoa para tomada de decisão sobre esse procedimento. Desburocratiza. Diminui o número de idas à Unidade Básica de Saúde, ao ambulatório ou até onde se faz esse atendimento inicial que consiste não só em uma palestra ou em uma consulta de orientações, a partir do que diz a legislação, mas também em entendimentos sobre as consequências desses atos. Até agora, para uma pessoa ter acesso a essa esterilização, era necessário uma etapa prévia onde ela era informada e também o cônjuge para que as duas partes participassem do processo e fizessem o preenchimento de papeladas e burocracias.

Um outro aspecto da redução de idade ser desejável no Brasil é que grande parte da nossa população tem filhos até os 21 anos e já constitui a sua prole antes dessa idade. O impacto existe justamente por ampliar quem pode ter acesso.

Em um passado recente, seria possível a gente imaginar uma mulher que não deseja ter filhos realizando, sem qualquer pressão médica e social, esse procedimento?

Essa pergunta é bem relevante porque não é possível imaginar nem no passado recente e nem mesmo no presente. Se a gente for considerar as condições de organização do Sistema Único de Saúde (SUS) e as filas de espera para o procedimento de esterilização, a gente sabe que não é apenas a mudança na legislação que vai garantir esse acesso para que uma mulher que não queira ter filhos, ligados a ela geneticamente pela via biológica, sem recorrer, por exemplo, à reprodução assistida, que essas mulheres façam isso de forma facilitada só a partir de uma mudança na lei.


Denize Ornelas é médica de família e comunidade, mestre em Saúde da Família, especialista em Saúde, Educação e Terapia Sexual e membro da Rede Médica pelo Direito de Decidir / Arquivo pessoal

Com certeza, a legislação aponta para uma mudança cultural, para uma mudança no olhar que essa sociedade tem para mulheres que desejam não ter filhos. Mas, ao mesmo tempo, a gente sabe que a mudança cultural necessária para que os médicos recebam essas pessoas, para que o próprio sistema de saúde priorize esse desejo pela não gravidez e que ela ocorra validada socialmente numa estrutura que faça a destinação de recursos financeiros e profissionais, para que se tenha a estrutura para fazer esses procedimentos de uma forma rápida – respeitando os limites de 60 dias, entre a vontade manifestada da pessoa e a execução –, ainda não é tão fácil de imaginar.

Onde, hoje, uma mulher que decida por esse caminho vai conseguir com 21, 22, 23 ou mesmo 30 ou 40 anos, seja lá qual for a idade, vai ter isso cumprido? Onde a gente pode imaginar isso? Ainda não é tão simples quanto parece.

No seu campo de atuação, quais os limites éticos do profissional de saúde na mediação de informações e na condução de suas e seus pacientes que decidam por fazer o procedimento?

Eu atuo como médica de Família em Comunidade, prioritariamente na atenção primária à saúde. Então, eu posso dizer que eu acompanho as pessoas em todo o seu ciclo de vida, desde a infância até o envelhecimento, passando aí pela idade sexual e reprodutiva. Quando eu penso no limite ético nessa mediação de informação, eu preciso considerar não só o desejo da pessoa, a autonomia, o que ela planeja para a vida dela naquele momento, como também em que base ela faz esse planejamento. Nessa relação, a gente tem também o conceito de justiça reprodutiva. As pessoas que têm piores condições de vida, que têm uma baixa expectativa em relação ao seu futuro, em relação a poder prover para sua descendência melhores condições do que as condições em que ela vive, com certeza vai ter mais dificuldade de fazer esse julgamento em relação a uma oferta que pode parecer tentadora de evitar uma gravidez não intencional. Então, pensar que a oferta de outros métodos anticoncepcionais, esclarecer que essa pessoa possa ter realmente acesso a esses métodos e que a Unidade Básica de Saúde seja uma garantidora do acesso, e não uma barreira ao acesso anticoncepcional de emergência e aos anticoncepcionais de longa duração, são fundamentais.

Na ética profissional, eu ainda me sinto muito desconfortável de considerar que é mais fácil eu conseguir hoje uma laqueadura para uma mulher que deseja não ter filhos nesse momento do que eu conseguir um implante, por exemplo, subcutâneo, subdérmico para que essa mulher possa optar por três anos de ter uma taxa de gravidez indesejada, que é muito baixa, às vezes até menor do que a própria laqueadura. Na minha opinião, o limite ético é a não universalização de todos os métodos anticoncepcionais disponíveis, inclusive o Implanon que poderia ser uma alternativa. Acho que nesse aspecto a gente ainda tem falhas, considerando principalmente o conceito de justiça reprodutiva.

Ainda existe uma pressão enorme da sociedade para que as mulheres reproduzam e tenham filhos. Uma decisão contrária a essa expectativa social ainda gera muita repercussão. Ao que ainda se devem essas ingerências?

Além de todo o trabalho material e o trabalho reprodutivo que as mulheres fazem não só de ter os filhos, de ter e gerar crianças, mas também de cuidar dessas crianças, de educar, de transformar essas crianças em adultos saudáveis e, consequentemente, trabalhadores, ser uma mão de obra a ser explorada, mas também a ser utilizada como mercado consumidor, existem mitos que o patriarcado sustenta em relação, por exemplo, à maternidade. A maternidade é vista como um dom, uma coisa inerente ao sexo feminino, a um componente biológico do maternal.

Essas ingerências elas ocorrem. Porque, no patriarcado, as mulheres são responsáveis por sustentar a reprodução da educação, da cultura, do legado de reprodução e continuidade da vida em um aspecto econômico de criação de mercado consumidor, de fornecimento de mão de obra, de fornecimento de pessoas que possam formar exércitos. E se a gente olha pela ótica da religião, pela lógica da cultura e muitas vezes da espiritualidade, também existe esse lugar que é concedido a mulher num plano não material, mas no plano afetivo, no plano espiritual, no plano em que ela se transforma em uma pessoa bem-aventurada e dadivosa a partir do momento que ela exerce a maternidade.

A lei que se atualiza, agora, é um avanço na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. A senhora acredita que vai ser, de fato, cumprida na prática?

É inegável a importância de atualização dessa lei em relação à autonomia e autodeterminação de cada um sobre o seu corpo. É fundamental que a exigência do consentimento do cônjuge realmente caia. É anacrônico e é despropositada dentro da lógica que a gente trabalha hoje de autonomia dos indivíduos. Nesse aspecto, eu acho que a lei vai ser cumprida, mas ela tem que ser amplamente divulgada, e os profissionais têm que ser capacitados. Porque, do mesmo jeito que há pouquíssimo tempo, a gente viu os planos de saúde e Unidades Básicas de Saúde inventarem o consentimento do cônjuge para ser colocado um DIU, retrocessos e barreiras que não existem mais na legislação em relação à laqueadura e à vasectomia podem continuar sendo operados num lugar que tenha menos acesso, menos informação.

Em relação à ampliação da faixa etária, ou para 2 filhos vivos no momento do pedido e [a obrigação] para que o procedimento seja realizado 60 dias depois do pedido, eu já vejo com mais dificuldade para que a lei seja cumprida de fato, uma vez que a gente tem escassez de recursos de financiamento e não é ainda uma prioridade dos municípios e dos estados, de forma geral, a oferta de laqueadura e de vasectomia, da esterilização cirúrgica.

Eu acho que a Lei tem tudo para ser cumprida, desde que se destinem os recursos necessários e a própria sociedade civil faça pressão, que o movimento de mulheres consiga fazer pressão e, a partir disso, se estabeleçam protocolos claros, filas de espera que facilitem esse acesso.

Uma mulher e/ou um homem que decidam pela esterilização (dentro da rede SUS) qual deve ser o primeiro passo, o que essas pessoas devem fazer? A quem elas devem procurar? Hoje, quanto tempo leva da primeira consulta até a realização da cirurgia?

Hoje, uma pessoa que decida pela esterilização e queira fazer esse procedimento pelo SUS, deve procurar a Unidade Básica de Saúde, a Clínica de Família, a Unidade de Saúde da Família mais próxima da sua casa, a unidade que for referência para a sua localização. Alguns outros ambulatórios, alguns centros de Atenção à Saúde Integral da Mulher, outros ambulatórios específicos de saúde do homem também podem ser porta de entrada para buscar esse procedimento, mas, em geral, ele é feito através de uma fila de espera que acontece na atenção primária a saúde, na atenção básica.

Essas pessoas que procuram a unidade vão ser encaminhadas para grupos de planejamento sexual e reprodutivo, onde acontecem palestras, orientações sobre diversos tipos de métodos anticoncepcionais e sobre o que está determinado na legislação e, ao mesmo tempo, eles devem ser encaminhados para consulta de enfermagem ou uma consulta médica que avalia o seu estado de saúde, a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis. As consultas baseadas no individual vão ser realizadas e vão ser alinhadas com essas expectativas para obtenção do direito de ficar na fila de espera para esterilização.

No Brasil, hoje, a gente tem estimativas de que, principalmente por conta da pandemia da Covid-19, tem cidades com fila de espera de três, quatro anos. Então, o tempo estimado entre procurar uma UBS para uma primeira consulta e realizar a cirurgia, hoje, varia em algumas cidades de 6 meses até mais de 1 ano, 2 anos.

Importante também afirmar que, além dessa consulta médica ou de enfermagem, essa pessoa também tem direito de passar por uma avaliação psicológica ou com assistente social, tem um atendimento multidisciplinar. Realmente, ter essas orientações sobre direitos bem reafirmada. E se tiver qualquer dúvida, em qualquer momento, ela tem o direito de desistir. É sempre importante a gente reforçar que uma vez que a pessoa procure para iniciar o processo, não necessariamente ela precisa concluir esse processo.

A laqueadura é uma cirurgia maior, que envolve internação e anestesia geral, não é?! Em contrapartida, a vasectomia masculina é um procedimento mais simples e de recuperação quase imediata. Ainda assim, no Brasil, laqueaduras são muito mais realizadas do que vasectomias. Qual a real motivação para isso acontecer?

Bom falar sobre isso. Primeiro que as mulheres acabam levando para si a maior parte da responsabilidade – não só sobre posse e cuidar das crianças, mas também para evitação, da gravidez. Nesse aspecto, a laparatomia, a cirurgia que você descreveu, com o corte que é feito na barriga, na região do abdómen, para se localizar a tuba uterina, fazer esse corte nas tubas, evitando que a tuba uterina capte o óvulo liberado pelo ovário e leve até o útero onde ele seria fertilizado, não é uma cirurgia de grande porte, mas é uma cirurgia que requer anestesia, centro cirúrgico, uma recuperação pós-anestésica sob observação. A paciente fica internada pelo menos 48 horas. Essa cirurgia também pode ser feita de uma forma mais simplificada, a partir da videolaparoscopia, que requer uma aparelhagem maior no centro cirúrgico, porque é feita a partir da visualização dessas estruturas pelo vídeo que entra na barriga. São feitos cortes menores, mas o procedimento em si procura a mesma coisa: reconhece as tubas uterinas, faz os cortes e promove essa separação entre as estruturas ovário e útero.

Realmente a vasectomia, se a gente for comparar com esses procedimentos para laqueadura, ela é muito mais simples. Até porque os testículos, canais deferentes, ficam fora do corpo, fora do abdômen, então é tudo feito via bolsa escrotal, são cortes pequenos na bolsa escrotal. Localiza-se essas estruturas e também se interrompe a passagem dos espermatozóides até a uretra. Assim, seria muito mais fácil, muito mais conveniente num casal hétero que o homem optasse pela vasectomia.

Algumas coisas estão associadas a essa motivação. A primeira, a reprodução do trabalho e de cuidado, em geral, que sobrecai sobre mulheres. Elas que se preocupam mais, e as consequências de uma gravidez não intencional, muitas vezes vão ser assumidas apenas por elas. Então, elas se sentem mais compelidas a buscar esse cuidado e essa  possibilidade de fazer evitação de uma gravidez não intencional.

Por outro lado, os homens carregam alguns mitos. Um dos mitos é o da impotência. Os homens que se sentem castrados, a partir do momento que se mexe nas estruturas da bolsa escrotal, associam psicologicamente isso a uma incapacidade de dar prazer pra parceira. Muitos homens associam a fertilidade com a capacidade de uma ereção, com a capacidade de ter e dar prazer. Acho que esse é um dos grandes pontos que atrapalha muitos homens, muitos deles precisam ter informação de que não estar fértil, não tem nada a ver com ser potente ou com poder sentir e dar prazer.

Edição: Gabriela Amorim