Mulheres negras estão cansadas de serem vistas apenas como mulheres fortes, prontas pra guerra
É muito comum escutar mulheres negras que estão sempre cuidando de outras pessoas, parece que ninguém se importa se estão bem ou não, o discurso sobre afeto é um, mas a prática é outra, a presença de quem esperam cuidado e compreensão se faz ausente. Estão cansadas de serem vistas apenas como mulheres fortes, bicudas, prontas pra guerra, que resolvem tudo, provedoras, a que anima e dá força a todo mundo. Sentem que estão frágeis e endurecendo. Dizem que não sabem amar e serem amadas.
Não conseguem ser elas mesmas porque presas aos padrões que lhes diminuem ou reduzem a sua humanidade à brabeza, à providência e ao sexo. Sentem dificuldades de manifestarem suas espontaneidades, delicadezas, falhas, sentimentos, necessidades de afeto e reconhecimento, ideias complexas sobre a realidade, mais ainda quando se relacionam com pessoas brancas de um modo geral. Ansiedade vem a passos cavalares se cometem qualquer tipo de erro, se enfiam o pé na jaca, se em algum momento têm comportamentos fora do que esperam que elas tenham, se são contraditórias. Disciplinam-se o tempo todo, controlam seus corpos, reprimem-se por medo de desaprovação, visões equivocadas sobre elas, de terem suas imagens congeladas nas falhas, de serem rejeitadas e abandonadas, de abrirem espaço para a branquitude reiteirar o olhar desumanizante sobre nós.
Na sexualidade a situação é ainda mais complexa. A sensualidade é mal vista, a vontade de ter experiências diferentes se chocam com o estereótipo da mulher que só serve para transar, vistas como mulheres que roubam os homens das outras, não se sentem respeitadas nas relações que têm, menos ainda se forem relações casuais. Querem ser amadas, sobretudo, por homens e mulheres negres. Vivem numa busca constante por um amor afrocentrado para não serem tachadas de palmiteiras. Casais negres são idealizades. Duvidam se merecem ou não serem amadas. Tentam convencerem-se de que a solidão ou o celibato é o que lhes resta. Uma espécie de condenação e limitação das possibilidades de experimentar a sexualidade e expressar seus afetos, já que o amor negro idealizado parece algo impossível para si mesmas, mas possível para algumas mulheres negras “sortudas”.
Esse discurso é por demais conhecido, não faltam produções científicas e midiáticas que abordem o assunto. Parece que não há espaço para falarmos de nossas dificuldades e incômodos fora de nossos grupos. Falar para nós, entre nós é muito curativo, mas também há falta de acolhimento das diferenças que portamos, dos infernos que lidamos. Como se não bastasse ter que lidar com a deslegitimação da branquitude, parece que temos que passar por avaliações dentro de nossos próprios grupos para provar o quão somos negras, o quão somos afrocentradas de verdade, o quão respondemos à imagem da mulher negra politizada ideal, o quão estamos dando a nossa vida pela questão racial, uma espécie de seleção de perfis autenticamente negres, como se a cor da pele deixasse de ter importância quando se trata de entendermos juntes os estragos que o racismo provocou em nós todes. Continuamos escravizadas por tantos senhores e senhoras negros e brancos internalizados, não paramos de trabalhar, construindo alguém em nós mesmas, distantes de quem queremos nos tornar, mas que atende às expectativas alheias, externas a nós. Estamos cansadas, trabalhando o tempo todo em tantas coisas que nos parecem caras, sejam elas materializadas ou de ordem subjetiva.
Eu me proponho a estranhar sempre este discurso que é familiar para compreender o quão maléficos são o racismo e o sexismo, mais ainda porque estou profundamente implicada com esta questão por ser também eu uma mulher negra e ter vivido e ainda experimentar situações semelhantes. E numa constante análise descolonizadora da minha subjetividade. Não é fácil fazer isto, porque é uma verdadeira arqueologia de nós mesmas, não se trata apenas de conhecer nossa história familiar. Nosso inconsciente está permeado por séculos de memórias ancestrais, de violências transmitidas intergeracionalmente, repetimos as experiências de corpos violados, escravizados que já não fazem parte deste plano. Em parte, experiências submetidas aos olhares delirantes da branquitude escravocrata e colonizadora sobre nós que também foram transmitidas aos corpos brancos que fazem parte desta contemporaneidade compartilhada.
Há uma arena interna em nós mulheres negras, brigamos com muitas imagens de nós mesmas que não foram criadas por nós, imagens estranhas que ganham expressão no cotidiano, quando queremos que a mulher liberta e libertadora de todas estas ideias delirantes e encarnadas nos mostrem os caminhos da libertação, do nosso quilombo existencial. Nos mostre os caminhos daquilo que faz a gente viver, que faz a gente escolher a vida e não a morte, qualquer que seja ela.
Há homens e mulheres negres muito adoecides, adoecendo uns aos outros e matando as possibilidades de se amarem, há pessoas dispostas a se cuidarem, se tratarem, mas ainda é uma pequena parte. Há muito mais mulheres negras do que homens negros fazendo este movimento e estas mulheres estão aos poucos entendendo que merecem muito mais da vida, do que aquilo que têm recebido de relações desiguais e adoecedoras.
Há um longo caminho a ser percorrido para a construção do amor próprio, e a primeira coisa a ser feita é não colocar o dedo em riste para nós mesmas e sim estender os braços, toda experiência que tivermos nesta vida é válida, e só nós mesmas sabemos o quão elas são importantes para descobrirmos quem somos, para recriarmos as mulheres libertadoras que nos habitam.
Cada mulher negra sabe das agruras que vive, que saibamos respeitar, escutar, acolher e abraçar a todas.
*Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Gabriela Amorim