Bahia

Reparação

"Estamos pensando um projeto de reparação para a população negra, a partir das mulheres"

Alane Reis, do Instituto Odara, fala sobre as pautas das mulheres negras no Dia pela Eliminação da Discriminação Racial

Salvador |
Organizações participam de ato neste terça (21) em Salvador para marcar Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial - Arquivo pessoal

Reparação já! É com essa motivação de que milhares de mulheres vão às ruas do país para reivindicar as suas agendas de luta no Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, 21 de março. Na Bahia, quinze organizações se articulam em um grande ato que acontece a partir das 17h, em frente à Secretaria de Segurança Pública, na Praça da Piedade, em Salvador. Essa mobilização simboliza o pedido pela vida do povo negro, denúncia contra o genocídio da população negra e exigência de reparação pela violência sistêmica que acontece no país.

Para falar desses assuntos duros e caros para as mulheres negras, o Brasil de Fato Bahia entrevistou a ativista do Odara – Instituto da Mulher Negra, Alane Reis. Jornalista, mestre em Comunicação, pesquisadora sobre Mídias Negras e Projeto Político de Nação, Alane atua como coordenadora do Programa de Comunicação do Odara, compõe a coordenação da Rede de Mulheres Negras do Nordeste, coordena a comunicação da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e é coordenadora executiva e editora de Conteúdo da Revista Afirmativa.

Brasil de Fato Bahia – A ONU instituiu o 21 de março como Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial. Em 1960, neste mesmo dia, na África do Sul, 20 mil negros protestavam contra uma lei que limitava os lugares por onde eles podiam circular. Hoje, mais de 60 anos depois, qual a importância de destacarmos este dia no mundo? O que esta data significa e representa para nós, aqui, no Brasil?

Alane Reis: Acredito que ter essa data marcada no calendário Internacional dos Direitos Humanos é extremamente importante para refrescar a memória. A memória coletiva, a memória internacional sobre um dos vários episódios em que as populações pretas do mundo – seja no continente africano, sejamos nós aqui pelas muitas diásporas – em que nos levantamos contra a violência, contra as opressões, contra o regime de escravidão, de sequestro em massa da população preta africana, seja ainda nos períodos coloniais, ou posteriormente, no processo escravocrata colonial aqui nas Américas. Ter essa data marcada é dizer que, ao longo da história, nós nos levantamos contra as violências, contra a lógica de desumanização dos nossos corpos, das nossas subjetividades e por isso que é importante.

A gente está vendo nesse momento, um marco histórico no Brasil que é a primeira vez que uma mulher negra, Ana Flávia Magalhães Pinto, assume a Diretoria-Geral do Arquivo Nacional. Em sua posse, ela foi falar sobre a importância da memória. Eu creio que esse 21 de março traz justamente esse marco, essa riqueza que é trazer para a memória um fato e transformar esse dia em um dia de levante no mundo inteiro.

Aqui na Bahia, por exemplo, vamos usar o 21 de março para fazer um grande ato público em frente à Secretaria de Segurança Pública, na Praça da Piedade, às 17 horas. Um ato pela vida do povo negro, um ato que tem como principal motim, denunciar violência, genocídio contra a população negra e exigir do estado brasileiro, do estado da Bahia, reparação para essas famílias. Para a comunidade negra, por essa violência sistêmica que vem acontecendo no Brasil antes mesmo de ser Brasil, e no mundo todo, como nós sabemos.


Alane Reis é comunicadora e ativista no Instituto Odara, coordena a comunicação da AMNB e é editora de conteúdo da Revista Afirmativa / Arquivo pessoal

Na Bahia, para celebrar esta data acontece a 5ª edição do Março de Lutas que faz parte de uma série de atos públicos em todo Brasil. Qual o propósito desta atividade e quais organizações assinam coletivamente essa ação?

Esta é uma agenda de incidência política organizada pelo Movimento de Mulheres Negras, a partir da Rede de Mulheres Negras do Nordeste e da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras. Se já estamos na 5a Edição do Março de Lutas, isso se deve a essas organizações de mulheres e também a nós do Instituto Odara que criamos essa ação, em 2019, com a intenção de fazer e de marcar as nossas reivindicações.

A gente sempre teve uma crítica muito grande à forma como o 8 de março foi se constituindo aqui na Bahia. Organizado, na maioria das vezes, por partidos políticos, sindicatos e com pautas que, muitas vezes, não dialogam necessariamente com o dia a dia das mulheres negras. Foi nesse contexto, assim, que nós do Odara criamos o Março de Lutas. Logo, a Rede de Mulheres Negras do Nordeste e a AMNB abraçaram o Março e chegamos nesta 5ª edição, organizado por cerca de 75 organizações de mulheres negras do Brasil inteiro que compõem essas duas grandes redes e articulações.
 
No âmbito do Março de Lutas, o tema escolhido para este ano é “Reparação no Brasil: o que as mulheres negras estão pensando?”. O que motivou essa escolha? O que reivindicam os movimentos de mulheres negras?

Esse ano a gente vem com uma perspectiva de trazer reflexão sobre o tema da reparação. Há muito tempo, o Movimento Negro Brasileiro vem falando que o país tem uma dívida histórica com a população negra por conta da escravidão, por conta da colonização e, no pós-abolição, o Estado não ter pensado em nenhum tipo de política de inserção da população negra na sociedade. Assim, ao longo do século XX, a população negra se tornou a população mais pobre, mais miserável, que vive nos guetos, nas favelas, que são as principais vítimas de todo tipo de violência – violência do Estado, violência institucional, violência racial.

A gente quer com o Março de Lutas dizer que nós estamos pensando um projeto de reparação para a população negra brasileira, a partir das mulheres negras. Que a gente pense como é que queremos um projeto de reparação. Um tema que já vem sendo discutido no mundo inteiro. A gente está tendo aí o Fórum Permanente do Afrodescendente que é uma agenda feita a partir das Nações Unidas e que a primeira edição aconteceu em dezembro, em Genebra. Este ano, vai acontecer a segunda edição, em maio, nos Estados Unidos.

O que a gente tem discutido dentro do Fórum do Afrodescendente é o tema da reparação. Como os estados, as sociedades que surgiram a partir da colonização, da escravidão, do sequestro africano e a partir da constituição forçada das diásporas africanas. Como é que esses estados nos devem? Este ano, a gente usa um ato de lutas para promover esse debate. Qual a reparação que nós queremos?

Para além dessa perspectiva histórica sobre reparação, vale a pena trazer também a violência do estado contra jovens adultos. Homens, mulheres, pessoas negras em geral. Cabe reparação à violência. Cabe reparação para as famílias, para as comunidades onde essas violências, esses crimes aconteceram, mas cabe reparação para a comunidade negra como um todo, pelo trauma de ver os seus iguais passando por esse tipo de coisa, sabendo que a sua vida está em risco a qualquer momento.

Cabe reparação, por exemplo, das grandes empresas que cometem atos contra a vida das pessoas negras, os grandes supermercados, as grandes empresas de segurança. Uma ação de reparação à comunidade negra pelo trauma. Cabe reparação às famílias que perdem mulheres vítimas da violência contra a mulher, vítima de feminicídio. Mulheres que já tinham medidas protetivas, como é o caso de Elitânia de Souza, liderança jovem, quilombola, de Cachoeira (BA) que já tinha duas medidas protetivas registradas, queixas dadas contra o ex-namorado e, ainda assim, o Estado não lhe deu condições adequadas de proteção e ela foi morta pelo ex.

Reparação às comunidades quilombolas, às trabalhadoras domésticas que trabalham anos em situações análogas à escravidão, às mortalidades maternas, todo tipo de violência contemporânea associada com a violência histórica da escravidão.

O combate ao feminicídio e às múltiplas violências contra a mulher parecem se repetir nos gritos, protestos e agendas de lutas de hoje e também de ontem, em passados recentes. Quais estratégias não deram certo? O que é preciso ajustar e quais novos caminhos ainda precisam ser desbravados para vencer essa realidade?

É evidente que a lei Maria da Penha é um avanço, por exemplo, para falar dentro da nossa principal legislação em relação ao combate à violência doméstica, mas ela não foi eficaz junto às políticas implementadas no âmbito dos estados. Não foram eficazes para prevenir a violência contra as mulheres negras, porque nos últimos 10 anos temos pesquisas que avaliam esses dados e que apontam que a violência contra as mulheres brancas diminuiu, e, nesse mesmo período, a violência contra as mulheres negras praticamente dobrou.

A gente tem que perceber que, quando a gente fala de mulheres negras e contextos de pobreza, a gente precisa pensar em formas de prevenção e de combate à violência, que não são formas, necessariamente, de campanhas publicitárias, por exemplo. O Odara faz uma crítica à gestão de política para mulheres no Brasil, na Bahia. Não se pode fazer campanhas e não atuar junto à Secretaria de Segurança Pública, no combate à violência. Não adianta ter campanhas como “Respeita as Minas” durante o Carnaval, se a Secretaria de Políticas para as Mulheres não incide junto. Não faz processos de denúncia, de retaliação a atitudes machistas, misóginas e assediadoras que muitos homens policiais que atuam na política agem com as mulheres.

Não se pode pensar que uma mulher perde uma medida protetiva e essa medida não é eficaz. Que os homens são os seus algozes. Quando ainda estão vivas, esses homens não são acompanhados. As mulheres também não são acompanhadas. É preciso mais acompanhamento das vítimas enquanto estão vivas. É preciso, sim, que as secretarias atuem junto ao Ministério Público. A Secretaria precisa gerir as políticas, mas também precisa mobilizar a sociedade civil e mobilizar os parceiros dentro do campo do estado para que a prevenção aconteça de verdade e justiça aconteça quando os crimes de feminicídio já aconteceram.

Quais nomes não podem ser esquecidos nos nossos dias e que são essenciais para forjar e fortalecer novas conquistas para a população negra da Bahia?

Acho que nós não podemos esquecer a própria história do movimento de mulheres negras aqui na Bahia. Não podemos esquecer a importância que o Grupo de Mulheres (GM) do Movimento Negro Unificado (MNU) tem e que nasce aqui na Bahia tem. Nós não podemos esquecer de nomes como Luiza Bairros, Valdecir Nascimento, Terezinha Barros. Não podemos esquecer de nomes como Sueli Santos, Lindinalva de Paula, Ana Célia Silva, Cilene Arcanja.

Não podemos esquecer a história que a Bahia tem para o Movimento Negro Brasileiro e para o Movimento de Mulheres Negras no Brasil e no mundo. Como nós tivemos um papel fundamental na organização das Marchas das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver, em 2015, em Brasília. Nós não podemos esquecer a nossa potência, do Movimento de Mulheres Negras da Bahia, quando nós acolhemos a organização do encontro de 30 anos, que aconteceu em novembro do ano passado em alusão aos 30 anos da Rede Afrolatino Americanas e Caribenhas da diáspora.

Nós não podemos esquecer que nós sempre estivemos ativas, autônomas, independentes e que a luta por reparação, a luta por nossas vidas, infelizmente, não faremos dentro de estruturas que não permitam autonomia e que não permitam que a nossa voz seja posta e colocada de maneira livre, autônoma. 

Edição: Gabriela Amorim