Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres avançam na história e dão um passo importante na emancipação dos corpos femininos. No começo deste mês, a Lei 14.443, sancionada em 2 de setembro de 2022 e que altera a Lei do Planejamento Familiar (Lei 9.263, de 1996) começa a valer na prática. A Lei reduz de 25 para 21 anos a idade mínima para mulheres e homens realizarem a esterilização. Além dessa redução etária, a partir de agora, essa decisão é pessoal e intransferível. Ou seja, não depende da autorização e do aval de um cônjuge para a realização do procedimento.
Com a nova lei, a laqueadura tubária nas mulheres pode ser feita logo após o parto, desde que a vontade seja manifestada por ela. E o limite mínimo de idade não será exigido para quem já tenha, ao menos, dois filhos vivos. Segundo o texto, a lei mantém o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico. Para a advogada e ativista Lua Marina essas mudanças legislativas vieram assegurar a autonomia e o direito de escolha das mulheres diante de seus corpos e dos seus desejos de reprodução. Ou mesmo de não serem mais mães, quando já tenham outros filhos.
Avanços
Lua Marina acredita que essa Lei precisa ser vista como uma introdução de maiores possibilidades de escolha para as mulheres em relacionamentos heterosexuais. “Essa modificação vem para atender às demandas femininas de avanço dessa consolidação da autonomia”, declara. Ela explica que antes, quando a idade mínima era de 25 anos, a lei não conseguia se cumprir de modo efetivo.
“Agora, a idade mínima é de 21 anos e, no Brasil, as mulheres começam a ter filho muito cedo. A gravidez na adolescência é comum, por causa de abusos, de início precoce da vida sexual, por causa do casamento infantil que é também uma realidade. Muitas vezes, essas mulheres chegam aos 25 anos já com vários filhos. Então, essa redução é muito estratégica na consolidação dessa autonomia e de escolha”, destaca a advogada.
Embora essa lei diga respeito a homens e mulheres, Lua destaca o que isso representa, em especial, para as mulheres. “A esterilização voluntária, a vesectomia, nos homens, e a laqueadura que vai ser feita nas mulheres que assim desejem, o foco dessa lei reside no planejamento familiar que nasce a partir de 1996 e é uma conquista do ponto de vista dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres”, declara Lua que além de advogada é feminista, ativista e se sente atravessada por todas essas temáticas.
Patriarcado
A advogada Lua Marina explica uma das bases materiais da sociedade patriarcal é o controle sobre os corpos e os produtos dos corpos das mulheres. “O controle da nossa capacidade reprodutiva é essencial para a manutenção da existência do patriarcado. E o direito vem sendo utilizado para esse instrumento de controle”, afirma a advogada ao reconhecer que, dentro do patriarcado, os homens representam a classe dominante e as mulheres a classe dominada, subjugada, especialmente, ao trabalho que por excelência é só feminino, a reprodução humana.
Para Lua, a lei do planejamento familiar não é uma questão menor ou acessória, muito pelo contrário. Para ela, em uma sociedade patriarcal as mulheres são reféns da vontade masculina e este fato é também marcador da dificuldade enfrentada por muitas mulheres de acesso aos métodos de prevenção à gravidez.
Uma outra singularidade apontada pela advogada é a vulnerabilidade durante a gestação. “O corpo da mulher está ali passando por mais fragilidade e, logo mais, com uma criança pequena vinculada a ela. Essa circunstância, costuma aprofundar situações de dependência e saídas de relações abusivas e violentas”, diz. E reforça que o uso de métodos contraceptivos, definitivos ou não, é uma segurança a mais contra essas estratégias patriarcais.
Lei do Planejamento Familiar
A Lei do Planejamento Familiar surge no ordenamento jurídico brasileiro em 1996, nascida a partir das lutas das mulheres brasileiras. “É uma conquista no âmbito do SUS, do movimento da saúde pública que sempre teve um protagonismo de mulheres. As mulheres são as principais responsáveis pelo maternar e pelo cuidar. Não apenas crianças, mas os doentes, idosos, pessoas com deficiência”, declara Lua.
A advogada reconhece que essa é uma conquista muito recente de mudança que se dá ao nível do reconhecimento jurídico, embora essa seja uma lei com quase 30 anos de existência. Durante todo esse tempo, as mulheres viveram sob essa situação de dependência e de necessidade de autorização do cônjuge para decidir sobre os seus corpos e suas decisões de reprodução.
“Veja, o que eu estou fazendo questão de destacar aqui: essa mudança foi um avanço significativo porque a Lei de Planejamento Familiar obrigou o serviço público de saúde, os hospitais, os postos de saúde, enfim, toda a rede pública, principalmente ao nível da municipalidade que se adaptasse para atender essa a demanda, tanto de fornecimento dos métodos contraceptivos, quanto da realização da contracepção definitiva, que é laqueadura e a vasectomia”, declara Lua Marina.
A efetividade da lei
A lei existe e foi atualizada para atender às demandas da sociedade que não é mais a mesma e, portanto, não aceita condições que limitem e determinem sobre os corpos das mulheres. No entanto, a advogada chama a atenção também para a importância da informação e da superação de velhos estigmas sociais.
Ela acredita que a existência da lei por si só não é suficiente. “A gente sabe de todos os obstáculos e dificuldades que estão colocados. De acesso à informação, de ter conhecimento sobres esses direitos e políticas públicas. De saber quais são os hospitais que prestam esse serviço e de como a mulher pode acessar”, enumera Lua sem deixar de lado os obstáculos do próprio relacionamento que, segundo ela, em alguns casos vão atuar para impedir que as suas mulheres tenham acesso à contracepção de qualquer tipo.
Ainda para falar dos entraves, Lua defende a existência de uma pressão médica e de uma pressão social em torno da maternidade compulsória. “De um lado, o julgamento negativo das mulheres que escolhem não serem mães. Do outro lado, um julgamento também muito negativo sobre as famílias mais empobrecidas que têm muitos filhos, de que é só para receber mais Bolsa Família, até o julgamento absurdo do porquê colocar mais pobre no mundo”, enumera a advogada.
Ela destaca, no entanto, o papel do Estado em garantir que as mulheres possam fazer escolhas sobre seus corpos e existências. “A esterilização voluntária ou a contracepção de livre acesso no Sistema Único de Saúde é uma política pública necessária para conferir autonomia às mulheres, acesso a direitos sexuais e reprodutivos e poder decisório sobre a sua própria capacidade reprodutiva”, declara Lua.
Edição: Gabriela Amorim