“Já é carnaval, Cidade!”. Após dois anos sem carnaval, a cidade de Salvador acorda nesta quinta-feira (16) cantarolando o clássico de Gerônimo Santana — a despeito de, no resto do país, o carnaval só começar mesmo no próximo sábado (18). Salvador tem saudades do carnaval e de seus ícones, como a própria música de Gerônimo, as disputas sobre qual o melhor circuito, banda, trio, ritmo, e ícones mais marginais como a tia da cerveja, o cara do gelo, a baiana de acarajé, mingau ou qualquer alimento que dê energia para seguir atrás do trio.
Embora a festa se organize ao redor desses ícones, e costume exaltá-los até, os trabalhadores e trabalhadoras ambulantes, que garantam alimentos e bebidas para foliões de todas as classes sociais, passaram e seguem passando por maus bocados. Desde a fila em frente à Secretaria Municipal da Ordem Pública (Semop) até os acampamentos improvisados ao longo dos circuitos, os e as ambulantes têm muitas queixas a fazer.
Fila e spray de pimenta
No último dia 8, os trabalhadores e trabalhadoras aguardavam em uma imensa fila em frente à Semop para conseguir uma licença de ambulante. Este ano, a prefeitura determinou que o cadastramento seria feito apenas online. Muitas dessas pessoas, no entanto, tiveram dificuldade de acessar o site e realizar o procedimento e, no dia 8, o sistema ficou fora do ar. A aglomeração em frente à secretaria pedia uma solução, mas foi debandada com spray de pimenta e bomba de gás lacrimogêneo da Guarda Civil Municipal.
Em nota, a Semop repudiou o que chamou de "atos de vandalismo". "Um grupo de pessoas tentou invadir o órgão, atirou pedras e colocou fogo em colchões no portão da pasta. A Polícia Militar e a Guarda Civil foram chamadas para garantir que o trânsito fosse liberado e que a segurança pudesse ser mantida no local", diz a Secretaria em nota. Tentamos entrar em contato com a Semop para saber quais soluções foram apresentadas às demandas dos ambulantes, mas até o fechamento dessa matéria, ainda não havíamos recebido resposta.
“Trabalho há 15 anos como ambulante, e todos esses anos nunca mudou nada! E esse ano a humilhação foi pior: passar um mês morando na rua pra obter uma licença”, afirma indignada Alessandra Santos. Ela conta que entrou às 9h no site e, às 9h05, já não havia mais licença para vendas no Pelourinho, onde ela costuma trabalhar durante o Carnaval. Ao final, ela precisou também enfrentar a fila da Semop para conseguir uma licença em local diferente.
“Esse é o lado que o folião não vê, a realidade dos dias de caos por aqui. E o tratamento que recebemos, da exploração da mão de obra em troca de apenas poder trabalhar pra garantir o nosso sustento”, define Vanessa Santos, uma das pessoas que estava na Semop. Ela trabalha há 25 anos como vendedora ambulante nas festas de verão de Salvador, que começam com o Ano Novo e englobam também as festas do Senhor do Bonfim, de Yemanjá e as prévias carnavalescas.
Vanessa conta que começou a trabalhar nas festas populares “pegada na barra da saia da mãe”. “Depois passei a trabalhar por conta própria, já adulta como uma forma de sobrevivência mesmo”, diz, enquanto me pede desculpas por demorar a atender o telefone. “Carregar o celular por aqui é quase que ganhar na loteria”, diz. Aqui, no caso, é o Farol da Barra, onde ela está desde o início da semana em um acampamento improvisado. “Fico no circuito, não tenho condições físicas de voltar pra casa”, explica. Para voltar para casa, ela teria que pegar ônibus e metrô com todos os produtos de venda, caixa térmica, etc.
Alessandra acrescenta que a renda que consegue arrecadar no carnaval costuma suprir muitas demandas para quem não tem emprego fixo. “Representa seis meses de problemas resolvidos! Um mês de geladeira cheia, material escolar pago…”, conta. E acrescenta que é mãe solo e única responsável pelo sustento financeiro da família.
Mulheres negras
Para Silvio Humberto, integrante do Movimento Negro Unido (MNU) e vereador em Salvador, Vanessa e Alessandra têm exatamente o perfil das trabalhadoras ambulantes que garantem uma parte importante do carnaval de Salvador: mulher, negra, responsável financeira pelo sustento da família. “O perfil daquelas pessoas é justamente o 14 de maio [de 1888] que não chega ao seu final. É a cor da pobreza da cidade de em Salvador. São as pessoas negras e composta em sua maioria por mulheres”, afirma.
Silvio Humberto ainda pontua que todo esse processo com os ambulantes no carnaval o faz lembrar do projeto de desafricanizar as ruas da capital na virada do século XIX para o XX, quando o poder público reprimiu a presença de pessoas negras que trabalhavam nas ruas de Salvador, como forma de garantir o sustento, a fim de “embranquecer” a cidade. “Pra mim, é sempre essa a explicação nessa cidade, envolta nesse ciclo vicioso da pobreza, em que o racismo estrutura suas relações sociais, estrutura seu cotidiano e contribui decididamente para a concentração de renda”, diz.
Neste ponto, Vanessa Santos também parece ser um exemplo do que explica o militante e vereador. Ela conta que trabalha como ambulante para garantir que os filhos possam estudar em escolas particulares e ter oportunidade de sair desse ciclo vicioso de que fala Silvio Humberto. Vanessa já sonhou em ter um diploma no ensino superior, mas, com a chegada dos filhos, priorizou que eles tivessem acesso à educação. Dessa forma, todo o dinheiro que consegue juntar com as vendas nas festas populares é investido em matrícula, material escolar, livros etc. “Acabei de formar o mais velho, que inclusive teve uma pontuação excelente no Enem: 860 na redação”, conta orgulhosa.
Soluções
“O problema não é técnico, é político”, afirma taxativamente Silvio Humberto. E explica que o problema não é o fato de o cadastro ter sido feito online, mas sim aceitar que aquelas pessoas podiam ser submetidas ao tratamento indigno de permanecer na fila, sob sol forte, durante horas. “Se a prefeitura consegue captar mais de R$27 bilhões para realizar o carnaval, não consegue resolver a fila da Semop?!”, questiona.
Ele apresenta como soluções que poderiam ter sido adotadas previamente pela prefeitura a presença de técnicos da Semop que pudessem auxiliar os trabalhadores e trabalhadoras a realizar o cadastro e, principalmente, antecipar-se a um problema, que já é recorrente, com as ferramentas disponíveis na prefeitura. “E reconhecer que podia ouvir os ambulantes para que eles apresentem também soluções. Essas pessoas não servem somente para votar. Essas pessoas estão na cidade, vivenciam os problemas da cidade, e a prefeitura deveria minimamente escutá-los”, acrescenta.
Alessandra Santos é enfática quando diz que a prefeitura não ouve os trabalhadores ambulantes e não se importa com suas propostas. “A prefeitura nunca chamou os ambulantes pra conversar. Eles agem como eles querem e temos qui aceitar. Temos vários jeitos de contornar esse problema de licença, e eles acham que nós somos ignorantes! Eles não dão oportunidades a ninguém de uma reunião”, afirma.
Na Câmara de Vereadores, Silvio Humberto apresentou algumas proposituras na tentativa de solucionar o problema nos anos seguintes, dentre elas, a priorização no credenciamento das pessoas com deficiência, idosos, mulheres chefas de família e ambulantes já cadastrados na Semop. Além da realização do credenciamento de forma presencial e virtual e da antecipação do cadastramento, há pelo menos 6 meses das festas populares.
Este ano, Vanessa Santos conseguiu uma licença para venda de bebidas, mas lamenta não ter conseguido credenciamento para venda de alimentos, que costuma ser sua maior renda. “Esse ano estou com um pouco de medo, psicológico abalado depois de tudo que aconteceu, da fila das licenças pra cá. Mas, como não posso desistir... Às vezes olho pra esse Farol e penso: preciso ter esperança de que tudo dará certo, ao menos as matrículas e livros preciso conseguir pagar”, resume.
Edição: Alfredo Portugal