A notícia de que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) determinou prazo para que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) conclua a demarcação do território quilombola de Enseada do Paraguaçu, em Maragogipe (BA), trouxe, ao mesmo tempo, muita alegria e medo para a população do quilombo. "A gente está muito feliz por dentro, mas não pode expressar por fora", afirma Liliane Soares, vice-presidente da Associação de Pescadores e Marisqueiras da Enseada de Paraguaçu.
Ela conta que o clima na comunidade está tenso desde que a decisão foi noticiada pelo Ministério Público Federal (MPF), autor da ação. "A gente não pôde festejar ainda, com medo de represálias. Os fazendeiros não aceitam que aqui é comunidade quilombola", explica a liderança. Liliane, que faz questão de pontuar que nasceu e se criou em Enseada do Paraguaçu, conta que a comunidade já percorreu um longo caminho até chegar a essa decisão. "Eu nem me lembro mais quando isso começou…", diz. E ressalta que, nesse longo período, diversas lideranças já sofreram ameaças de morte.
De acordo com o MPF, esse longo caminho descrito por Liliane já dura mais de 15 anos. O processo de reconhecimento, titulação e demarcação do território se iniciou em 2008. Na decisão, o TRF-1 determina que o Incra conclua Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) em até 12 meses. Depois dessa etapa, o Instituto ainda terá prazo de três anos para concluir as etapas posteriores da regularização fundiária, sob pena de multa diária a ser revertida em favor da comunidade. Ou seja, o longo caminho de que fala Liliane ainda pode demorar, pelo menos, mais quatro anos até chegar à definitiva titulação do território.
Até lá, ela conta que a comunidade se sente acuada pelas cercas das grande propriedades. "Tem cerca até na praia!", diz. A associação quilombola reivindica ainda que o Estaleiro da Enseada do Paraguaçu, mega obra de construção naval, está construído dentro de seu território. "A comunidade se sente vulnerável", explica Liliane.
Processo
O processo de titulação de terras quilombolas, normalmente, é regido por legislação federal, mas na Bahia e em alguns outros estados do país, há também leis estaduais que incidem sobre esse processo. O RTID, a que se refere a decisão do TRF-1 no caso de Enseada do Paraguaçu, é apenas o segundo passo dessa caminhada. Trata-se do estudo antropológico, levantamento fundiário, mapeamento e cadastramento de famílias, que devem ser realizados pelo Incra.
Após o RTID ser analisado pelo Comitê de Decisão Regional (CDR), o processo de titulação pode tomar diversos caminhos, a depender da decisão do CDR. Ele pode passar por consulta a diversos órgãos, como Iphan, Funai, Ibama, etc.; ser remetido para análise fundiária, para a Casa Civil ou mesmo para a Advocacia-Geral da União (AGU). Cumpridas essas possíveis etapas, uma portaria do Incra deve ser publicada reconhecendo a área do território. E novos diferentes caminhos se abrem até chegar à outorga do título, desde reassentamentos e desapropriações, caso necessário, até a demarcação física do território.
Mesmo sendo um processo extenso, o TRF-1 acatou a alegação do MPF de que 15 anos é período longo demais para concluir um único processo de demarcação. Para o MPF, o desrespeito aos prazos tem sido uma praxe na atuação do Incra em relação à titulação de territórios quilombolas, e afirma que, nos últimos 27 anos, a autarquia concluiu apenas 3% da demanda de regularização quilombola.
Comunidades quilombolas
De acordo com dados preliminares do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Bahia tem a maior população quilombola do país, um total de 116.437 pessoas espalhadas por 1.046 áreas em todo o estado.
Embora existam há muitos séculos, apenas na Constituição de 1988 o Estado brasileiro reconheceu o direito das comunidades quilombolas a seus territórios. A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) afirma que esses territórios, além de serem oriundos de antigos quilombos construídos por pessoas escravizadas refugiadas, também foram estabelecidos em terras oriundas de heranças, doações, pagamento em troca de serviços prestados ou compra de terras, tanto durante a vigência do sistema escravocrata quanto após sua abolição.
Ainda segundo a Conaq, essas comunidades são definidas por uma trajetória histórica dotada de relações territoriais específicas com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência, e sua caracterização deve ser dada segundo critérios de auto-atribuição atestada pelas próprias comunidades. "A luta do movimento quilombola caracteriza-se pela defesa do seu território, consequentemente, de sua sobrevivência enquanto grupo específico ameaçado pelo avanço da especulação imobiliária, dos grandes empreendimentos, que afetam e alteram diretamente a existência desses grupos”, diz a Conaq em seu documento de fundação.
Edição: Alfredo Portugal