A luta antirracista e contra o racismo religioso não tem descanso e nem tira férias. Para o Povo de Santo todos os 365 dias são para pedir por diversidade, respeito e liberdade. Amanhã, 21 de janeiro, Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, diversas organizações e lideranças de diferentes religiões ocupam as ruas de Salvador. Outras ações também acontecem por toda a Bahia.
A data é uma referência à morte da Ialorixá Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum, falecida em 21 de janeiro de 2000, após ter sido vítima de intolerância religiosa da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Desde então, há 22 anos, neste dia, ações acontecem por todo os cantos para visibilizar a luta pelo respeito a todas as religiões.
A historiadora Ana Gualberto chama atenção para o aumento nos números de casos de intolerância e de ódio religioso praticado, principalmente, contra as religiões de matriz africana. Só no ano de 2022, até o dia 10 de agosto, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) registrou 938 casos atendidos. Destes 542 de racismo, 313 de intolerância religiosa e 83 correlatos.
“A grande questão que precisamos reafirmar é como a gente pode avançar nesse debate dentro da sociedade”, reflete Ana. Ela defende que os espaços religiosos, principalmente, os de tradição cristã, colocam-se contrários às práticas tolerantes. “É importante que as lideranças entrem em processo de campanha, de conscientização dos seus fiéis de que a fé não é exclusivista e precisa respeitar as outras pessoas dentro das suas tradições e práticas”.
Outro ponto que Ana Gualberto, Ebomi de Oxum do Terreiro Ilê Axé Ofá Omi Layó, destaca como urgente é a consequência jurídica do ato de intolerância. “Hoje, no Brasil, assim como a gente não tem ninguém preso por crime de racismo, embora seja inafiançável, nós também não temos ninguém preso por intolerância religiosa”, constata Gualberto.
21 de janeiro em Salvador
Este ano, para marcar a data e reafirmar que todas as expressões de fé importam, Terreiros de Candomblé, KOINONIA – Presença Ecumênica e o Conselho Ecumênico Baiano de Igrejas Cristãs (CEBIC), com o apoio da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) e de diversas outras organizações se reúnem neste sábado (21). As organizações que promovem esse ato assumem o compromisso de reafirmar que todas as pessoas são dignas de respeito e de liberdade de crença, inclusive as que não professam nenhum credo.
A atividade começa às 8h com uma homenagem em frente ao Busto de Mãe Gilda, em Itapuã. Esse gesto amoroso é promovido pelo Terreiro Axé Abassá de Ogum que tem uma forte atuação na região do Abaeté.
"O dia é de luto e também de vitória da família que, na pessoa da Ialorixá Jaciara Ribeiro, sua filha, ganhou no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) ação contra a IURD, apoiada pela advocacia de KOINONIA”, declara Ana Gualberto, diretora Executiva de KOINONIA, organização ecumênica e inter-religiosa que há 28 anos promove atos públicos e debates. Ana reforça a importância de palavras, orações e atos rituais em memória das vidas roubadas pela intolerância, para que não se repitam, para que nunca se esqueçam.
Gualberto defende que os atos em combate à intolerância religiosa do dia 21 também repudiam agressões a monumentos. Como ao Busto de Mãe Gilda, já vilipendiado, e a outros tantos, como o de Mãe Stella, queimado recentemente. Para dar destaque a essas e outras questões, às 10h deste sábado, KOINONIA em parceria com o Terreiro Axé Abassá de Ogum lança vídeo e realiza debates públicos sobre a relação histórica do racismo e da intolerância religiosa.
“O vídeo dá informações históricas, situa pautas jurídicas e dá voz ao ativismo que busca o avanço de narrativas favoráveis à causa da promoção da liberdade e da luta pelo fim das agressões intolerantes e racistas”, declara Ana.
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Ainda neste dia, à tarde, está previsto um ato público em favor da liberdade religiosa e do respeito entre todas as expressões de fé e de não-fé. A concentração está marcada para às 15h, em frente à Igreja Rosário dos Pretos, de onde sai a tradicional caminhada inter-religiosa. De lá, todas as pessoas seguirão juntas até o Monumento da Cruz Caída, na Praça da Sé.
Ana Gualberto nos lembra que este manifesto do dia 21 de janeiro é também para caminharem juntos por todas as vítimas e é para não largar a mão de ninguém até que só restem fora da roda os intolerantes e racistas. “A fé precisa ser um processo de construção do amor. De consolidação de práticas do amor. A sociedade deve ser para todas as pessoas, todas as fés. Afinal, todos os caminhos levam ao sagrado”, convoca Ana.
1º caso de 2023
O ano de 2023 mal começou e já se registrou o primeiro caso de racismo religioso na Bahia. Na madrugada do dia 31 de dezembro para o dia 01 de janeiro, nas primeiras horas do ano novo, na cidade de Vitória da Conquista, no Bairro Vila Elisa, o Unzó Reino de N'zazi foi atacado.
O terreiro de axé casa de Xangô que atua e reside há mais de 10 anos na região foi violentamente invadido. O pai de santo do terreiro, Tata Lucas de Xangô nos conta que o invasor acessou o terreiro ao arrombar uma das portas. No local, destruiu todos os bens materiais pertencentes.
“A casa de morada não estava mexida, mas o Barracão, o quarto de santo, a cozinha do axé, estava tudo destruído. Imagens quebradas, caldeirões furados, tambores pocados, máquinas de costura quebradas, mantimentos do axé espalhados”, desabafa o Tata que afirma ter perdido todos os objetos que tinham relação com os orixás.
“Foi uma cena muito triste, muito dolorosa. Eu nunca imaginei que ia acontecer comigo. Uma pessoa que mora próximo. Que nunca me deu um bom dia, um boa tarde. Que nunca teve problemas comigo e nem com ninguém aqui, e fez o que fez”, desabafa o Tata Lucas de Xangô.
De portas fechadas desde o ocorrido, em protesto contra o vandalismo, o pai de santo diz que a situação por lá é desesperadora e que o maior desafio, agora, para o ano que mal começa, é construir tudo novamente. “É ter fé e não abaixar a cabeça”, diz.
O Tata relata que na casa foi encontrado o documento de identidade do autor da barbárie. Um rapaz de nome Renan Neres Lima foi o responsável pela invasão. “Ao chegar na delegacia, o homem confessou o crime e mesmo assim continuou com palavras de agressão e desrespeito”, relembra uma das maiores ofensas de sua vida. Palavras que ele não consegue esquecer: "Isso é coisa do demônio!", repete, com dor, Lucas de Xangô, a fala do ex-vizinho que, até o momento, não reapareceu na vizinhança.
Com dor, mas com desejo de reparação e justiça ele pede apoio. “Não podemos deixar que isso continue acontecendo na nossa religião”, clama o líder religioso por justiça. O caso está sendo acompanhado pelo Distrito Integrado de Segurança Pública (Disep) de Vitória da Conquista (BA).
Edição: Gabriela Amorim