As escritas de si comprovam, mais uma vez, a sua potência e chegam a lugares que mesmo aprisionados são incapazes de conter e de reprimir as palavras. A força da literatura produzida a partir do cárcere aponta para caminhos de liberdade.
A primeira edição do Prêmio Literário Abolicionista Maria Firmina dos Reis premiou cinco mulheres sentenciadas por sua escrita poética. A atividade aconteceu no dia 15 de dezembro, no final do ano passado, no Conjunto Penal Feminino do Complexo Penitenciário Lemos Britto. Os textos ganharam vida em 2022, mas promovem reflexões a qualquer tempo.
Motivadas pela primeira escritora e romancista negra do Brasil, a maranhense Maria Firmina dos Reis, mulheres encarceradas lançam as suas próprias narrativas. Poemas abolicionistas que povoam o mundo e chegam aonde elas ainda não podem ir. Essa iniciativa é resultado dos 12 anos de atuação do projeto de extensão da Universidade Federal da Bahia (UFBA) “Corpos Indóceis e Mentes Livres”, liderado pela professora Denise Carrascosa.
“É importante destacar que esse é um trabalho organizado de mulheres negras abolicionistas. Artistas, escritoras, cineastas, professoras e advogadas que, em articulação com mulheres que estão encarceradas, organizam formas que são jurídicas, mas também artísticas de construir projetos de libertação. Portanto, um lugar de reivindicar humanidade, beleza e criação para que elas possam existir e serem visibilizadas”, declara Denise, professora doutora em literatura da UFBA e idealizadora do projeto.
Com realização de oficinas de leitura e de escrita em encontros semanais, ao longo do ano, essa iniciativa permite a remição de pena por estudos, leitura e trabalho. O projeto é totalmente autônomo e não conta com financiamento de instituições públicas ou privadas.
Sarau Firminas
Com olhar sensível, cuidadoso e, ao mesmo tempo, muito sofisticado em relação às temáticas e às estéticas das mulheres participantes, a primeira edição do Prêmio Literário contou com um júri honorário composto por Conceição Evaristo, Jenny Guimarães, Mirian Alves e Lindoneta Ferreira, poeta que já passou por esse curso na condição de mulher encarcerada e, hoje, mulher livre e artista.
Esse júri também é composto por mulheres que são organicamente vinculadas aos projeto, a exemplo da escritora Luciany Aparecida. Ela reconhece que a escolha foi difícil. “São textos fortes. São textos que nos convidam a sair da nossa zona de conforto e a pensar a sociedade de modo mais amplo”, afirma.
Para Luciany foi inspirador participar desse momento. “Essa experiência mostra que pensar a escrita é muito mais do que só o exercício de ler e pensar o texto. Pensar o poema, pensar a literatura é também refletir sobre a vida e viver”, declara.
“Quando a gente entra no presídio para olhar para essas mulheres, a gente precisa ter o cuidado de não encaixá-las nas ideias que a gente costuma ter sobre pessoas encarceradas”, declara Bruna Barros, cineasta e também júri desta edição.
Firminas em Fuga na FLIP
Denise nos conta que para conceber esses poemas, as participantes leram, ao longo do ano, escritoras negras da afro-diáspora e do continente africano, cuja literatura conversa com suas intimidades, com seus projetos de memórias e de identidades. "Em seguida, esses textos foram organizados em uma coletânea 'Firminas em Fuga'. A partir dessa obra, elas foram convidadas para a Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP), com vídeo sarau poético mostrando as suas insatisfações, as suas belezas e os seus projetos de liberdade", comemora Carrascosa.
Esse vídeo, em formato de documentário, foi dirigido por Patrícia Freitas e Bruna Barros e permitiu levar essas mulheres, seus textos e suas autorias ainda mais longe. “Eu sinto que no documentário o nosso processo foi de só mostrar que elas são pessoas. Uma visão que parece muito radical pra muita gente, mas é isso. A única diferença delas pra nós é que elas estão encarceradas”, afirma Bruna.
Denise define o projeto como um quilombo educacional. “O propósito e o sentido do quilombo para o povo negro, para a comunidade negra é criar formas de libertação de maneira comunitária. Existe uma tecnologia que passa pelo corpo e as artes negras passam pelos corpos. Ao trançar esses saberes – históricos e ancestrais – nós vamos propondo a construção aquilombada na direção de um projeto que é contra várias formas de encarceramento”, declara.
Edição: Gabriela Amorim