As férias escolares já chegaram. As crianças estão mais tempo em casa, sem as rotinas de aulas e de compromissos com os estudos, mas nem todas as famílias conseguem alinhar o recesso junto com a prole. O desafio de controlar o tempo delas na frente das telas - tablet, celular, computador, video-game - se impõe como uma questão de atenção que envolve toda a família.
A decisão por não se render ao que parece mais simples e mais imediato para aquietar a criança - hipnotizada com o mundo sem fim de desenhos e de conteúdos infantis para todos os lados - não é tarefa fácil. Mas dosar o tempo, dialogar sobre o que assiste, diversificar as atividades e achar outros caminhos e outras escolhas também são possíveis.
A pedagoga Ana Beatriz Araújo, que também é mãe, defende essa ideia. Ela afirma que, dentro do período das férias, é importante garantir uma rotina mínima para que as crianças não se percam.
"Fazer alguns combinados para que ela use do tempo livre para brincar, para se distrair, para assistir - se for a prática da criança - mas também preservar um tempo para algumas atribuições da família. Algo que dentro da rotina da casa lhe confira alguma responsabilidade e dê a ela essa ideia de ser útil dentro da vida familiar", explica.
Pró Bia, como é mais conhecida, usa as redes sociais para falar ativamente sobre inclusão e para trazer debates oportunos entre escola, educação e infância. Ela sabe dos prejuízos que as telas podem causar em diversas áreas do desenvolvimento infantil, mas nos chama atenção para o reconhecimento geracional.
"Somos pais analógicos, outros são do período de transição, e temos filhos digitais. Crianças que estão conectadas com esse tempo e que como tal a gente não pode negar a elas essa realidade. É importante sentar, conversar com essas crianças e tentar estabelecer alguns acordos sobre a programação assistida, sobre os conteúdos acessados. O que é adequado, o que não é e o porquê", destaca,
Infância em comunidade
Shandra Andere é mãe de três meninos. Cayrê de 24 anos, Rudá de 16 e Kaluanã de 10. Já viveu isso em dose tripla e em tempos diferentes. Para ela, a maior dificuldade é a incompatibilidade de agenda quando as crianças estão de férias e os pais, não. Esta é a realidade de Shandra que, além de mãe solo, é contadora de história, atriz, palhaça, brincante, e no verão tem ainda mais trabalho.
"Aqui em casa criança só ganha celular próprio depois dos 12 anos, antes disso tem acesso ao tablet de estudos dado pela prefeitura e ao computador de casa em horários bem regrados, quando já cumpriu com todas as obrigações escolares e de manutenção da casa. Como moro numa comunidade, as férias são sinônimo de crianças brincando na rua", destaca.
Filha de uma palhaça, Shandra trabalha na área de eventos infantis desde 1987. Nascida em Mogi das Cruzes (SP), onde iniciou sua carreira, mudou-se em 2006 para Salvador e desde então atua em peças e trabalhos na área de brincadeiras, palhaçaria e contação de histórias. Há nove anos desenvolve um trabalho social na Vila Brandão, comunidade popular situada ao fundo da Igreja da Vitória, com aulas de teatros e oficinas artísticas para crianças e adolescentes. A artista reconhece que essa vida coletiva faz muita diferença no lazer e na diversidade de brincadeiras que consegue proporcionar.
"Temos uma quadra comunitária que usamos para jogar bola e brincar com as outras crianças da Vila. Nessa perspectiva, nós, educadores aqui da comunidade, nos juntamos e realizamos várias oficinas de verão, tipo uma colônia de férias para a criançada daqui. São tardes com brincadeiras, oficinas de teatro, poesia, pintura, horta, banhos de mangueira. Temos também uma praia e fazemos dela o nosso quintal. Todos os dias das férias damos ao menos um mergulho", comemora Shandra.
Beatriz reforça a importância de manter tudo sempre em diálogo com a criança e trazendo o entendimento possível para cada faixa etária. Além disso, a pedagoga acredita que é importante intercalar as telas com atividades de movimento, de preferência ao ar livre, e que coloquem a criança em ação.
"O corpo da criança tem inteligência própria. É o corpo que impulsiona o desenvolvimento. Então, essa criança precisa ter a possibilidade de usar esse corpo nos mais diferentes espaços. As ideias de brincadeira e de expressão vão surgir", afirma.
Outra característica que marca este tempo na percepção de pró Bia é a geração dos filhos únicos. Ela percebe que nos dias de hoje são poucas as famílias com mais de um filho e essa é uma realidade que as crianças terão que lidar para a vida toda. Como alternativa de interação, ela defende que as crianças possam ter acesso umas às outras. Especialmente, que possam brincar e se encontrar com as crianças que já são do seu convívio e do seu vínculo afetivo.
"Eu mesma tive a oportunidade de presenciar o meu filho brincando com o amiguinho da escola, num horário fora da escola, online. Cada um na sua tela, mas cada um com os seus brinquedos. Apresentando os seus brinquedos e propondo brincadeiras", declara a professora, que acredita muito na sagacidade e criatividade das crianças.
Tempo de qualidade
Quem mora em Salvador ou na região metropolitana, com acesso privilegiado para as praias, tem essa opção a mais de lazer. É o que faz Shandra, sempre que pode. "Quando quero fazer um passeio com meus meninos, sempre escolho ir para a Ilha de Itaparica pela proximidade e pelo valores acessíveis. As praias são tranquilas e vazias. O que é mais valioso na infância são as lembranças e me esforço muito pra criar lindas memórias", declara.
Como dica valiosa e, talvez, a mais importante, Beatriz destaca que um diferencial enorme na infância é a presença de tempo de qualidade dos pais, mães e cuidadores dessas crianças.
"Se os pais puderem, reservem um tempo. Não precisa ser muito, mas que seja um tempo de presença plena na vida dessa criança. E brincar junto no chão da sala, no play do prédio, brincar junto na praia, na praça. Fazerem coisas juntos", declara a pedagoga.
Shandra, que é brincante, também convoca a brincadeira e incentiva os pais - mesmo quem trabalha muito e não tenha férias - para separar uma hora no final da tarde para estar com as crias. "Reserve o fim de semana para um passeio ou simplesmente para ficar em casa jogando ou fazendo arte. Uma caixa de papelão com tampinhas pode virar uma espaçonave bem legal".
Nesta mesma direção, Beatriz desafia o mundo adulto a se lançar nas experiências de brincadeiras próprias da criança de hoje e a se permitir em algum momento experimentar essa fruição em família.
"Não precisa ser uma brincadeira estruturada. Pode ser uma atividade familiar que se torne uma grande brincadeira porque envolve o prazer de estar junto. Fazer uma pipoca juntos para assistir a um filme, por exemplo. Isso torna a história mais rica. Isso cria narrativas que vão ser as grandes tatuagens emocionais que vamos deixar nos nossos filhos", conclui.
Edição: Lorena Carneiro