Bahia

Entrevista

Pablo Bandeira: "Despejos são um ato de violação de direitos humanos cometido pelo Estado"

Dirigente do MTD explica propostas da campanha Despejo Zero e analisa desafios da luta pelo direito à cidade no país

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
Pablo é dirigente do MTD, uma das 175 organizações que compõem a campanha Despejo Zero - Reprodução MTD

A Campanha Nacional Despejo Zero – Em Defesa da Vida no Campo e na Cidade, foi lançada em junho de 2020 com objetivo de lutar contra a situação de insegurança pela qual passam famílias vulneráveis e pessoas em situação de rua. A articulação nacional, que hoje já congrega mais de 175 organizações e movimentos urbanos e rurais, foi responsável por auxiliar inúmeras famílias ameaçadas de despejos. 

Na última semana, membros da campanha se reuniram com representantes do governo de transição de Lula para apresentação das medidas para o enfrentamento dos despejos e dos seus impactos no Brasil. Para entender melhor os desafios e propostas da campanha, conversamos com o advogado Pablo Bandeira, da Direção Nacional do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores Urbanos por Direitos (MTD). Pablo destaca caminhos de diálogo, políticas públicas e participação popular para superar as mais de 6 milhões de habitações que compõem o déficit habitacional brasileiro e garantir o direito à cidade. 

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Brasil de Fato Bahia: As cidades são espaços de convivências comuns. Elas são habitadas pelo conjunto de suas populações. Povos com culturas, relações sociais, políticas e econômicas distintas. As cidades carregam em si marcas do passado e do presente que vão também forjar o futuro. O momento histórico é propício a um novo projeto de cidade, de estado, de país?

Pablo Bandeira: É um momento histórico e me parece que reabre esse debate sobre projetos de cidades que queremos construir. Cidades que sejam democráticas, inclusivas, que respeitem a diversidade de gênero, étnico-racial que simboliza a diversidade que é o povo brasileiro. 

Acho que é o momento com o novo governo que está entrando em 2023, o Governo Lula, dá esperança de a gente pensar em levantar novamente a bandeira por uma reforma urbana. É muito necessário que a gente pense demandas para população que não só passa pela demanda da habitação, mas também da mobilidade urbana, do saneamento básico, do acesso a serviços públicos, com serviços de saúde que na pandemia, inclusive, entraram tão em evidência, da necessidade de termos um Sistema Único de Saúde. Então a cidade reúne um conjunto de demandas e acesso a direitos e acho que tem espaço, sim, para a gente fazer um debate sobre projetos para cidades.   

O Brasil enfrenta uma complexidade de conflitos fundiários. A Campanha Despejo Zero mapeou mais de 1 milhão de pessoas ameaçadas de despejos coletivos no campo e na cidade. Onde vivem, quem são e quais as condições de vida dessa população que convive diariamente sob este risco?

De fato, a Campanha Despejo Zero cumpre um papel fundamental de olhar para o perfil dessas famílias que estão, hoje, ameaçadas de despejo. Em grande medida, um perfil de famílias chefiadas por mulheres, mulheres negras, idosos, crianças e famílias que foram para essa condição das ocupações urbanas.  

[Queremos] Cidades que sejam democráticas, inclusivas, que respeitem a diversidade de gênero, étnico-racial que simboliza a diversidade que é o povo brasileiro

Se a pessoa está ameaçada de despejo é porque está ocupando um terreno, um prédio, uma construção que está sob a propriedade de outra pessoa, mas que você se utiliza da posse – muitas vezes – de terrenos e prédios que estão vazios ou subutilizados e quem por isso, não cumprem a função social da propriedade prevista na Constituição Federal. Esta é uma condição pra se usufruir de um imóvel. Então essas famílias reivindicam a posse desse imóvel para que ele cumpra a função de moradia. 

Vale lembrar que esse contexto mapeado pela campanha teve início na pandemia da Covid-19, que colocou muitas pessoas na condição de desemprego logo nos primeiros meses. O auxílio emergencial amenizou essa situação, mas muitas dessas famílias sem renda não tiveram outra alternativa senão buscar um teto. E que não passasse pela necessidade de pagar um aluguel, pois os preços estão nas alturas. Então a Campanha cumpriu esse papel e, hoje, a gente tem essa situação agravada com mais de um milhão de pessoas sob essa condição.

Qual a realidade do nordeste e da Bahia nesta temática?

Hoje, entre as regiões que estão mapeadas pela campanha, em números de famílias e em número de pessoas ameaçadas, o Nordeste está em terceiro lugar. Atrás somente da região sudeste e – pasme – da região norte, que normalmente não entra nesses dados a nível nacional.  O mapeamento e a presença da Campanha têm facilitado também que esses dados cheguem e estejam ali mapeados. 

A gente sabe que esses dados são os dados que a Campanha conseguiu reunir, mas que – com certeza – eles não representam a totalidade do número de famílias que vivem em aglomerados urbanos, em condição precária de habitação. Isso é o que a Campanha conseguiu reunir. Principalmente, em locais que tem acompanhamento, seja de algum movimento social, seja de uma assessoria jurídica ou técnica voltada ali para a condição de habitação. 

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A Bahia não é diferente disso. São mais de 4 mil famílias ameaçadas no nosso estado e o centro de Salvador, inclusive, é um desses exemplos. A gente encontra também cidades como Feira de Santana e Vitória da Conquista. A realidade das ocupações é uma realidade presente no nosso cotidiano. Grandes aglomerações urbanas, inclusive. Ocupações irregulares que estão na formação dessas cidades. Não é à toa que até hoje muitas pessoas nem têm o título da moradia e a região nordeste não está fora dessa realidade.   

Quais propostas são sugeridas pela Campanha Despejo Zero para que os processos de remoção e de reassentamento de famílias sejam garantidos em alinhamento com o exercício dos direitos políticos, sociais e econômicos? Em quais casos essas remoções são indicadas?

A mensagem que a gente traz pra sociedade é de despejo zero. Nós somos contra os despejos. Porque entendemos que - ainda mais se tratando de imóveis que não estão cumprindo a sua função social - este é mais um ato de violação dos direitos humanos cometido pelo Estado brasileiro e ali expresso na força policial que está cumprindo a ordem de um juiz. Nós somos contra os despejos. Entendemos que esse tipo de medida se trata de uma violência estatal e que, inclusive, contraditoriamente, age diante da omissão do estado que não garante direito à moradia. 

É claro que na existência de um programa habitacional que esperamos, agora, que o novo governo que cumpra, aí sim, você pode, em comum acordo com as famílias, ter uma destinação digna. Você pode dar um destino adequado para essas pessoas.

Entendemos que esse tipo de medida se trata de uma violência estatal e que, inclusive, contraditoriamente, age diante da omissão do estado que não garante direito à moradia 

Já caiu a última suspensão do Ministro Luiz Alberto Barroso com relação à DPF 828 e nós estamos tomando também outras iniciativas ao considerar que, agora, já está em vigência o regime de transição e os juízes já podem emitir decisões judiciais, considerando que tenha audiência de mediação, acompanhamento do Ministério Público e da Defensoria Pública. Isso passa pela condição de conflitos fundiários que estão hoje instituídas nos tribunais de justiça e nos tribunais regionais federais    

As mais de 175 entidades reunidas na Campanha Despejo Zero assinaram uma carta coletiva direcionada ao Governo de Transição com propostas de medidas urgentes e estruturais para enfrentamento dos despejos e seus impactos no Brasil. Quais os principais destaques dessa proposta?

A carta apresenta uma síntese de propostas que são, de fato, necessárias pra gente superar esse contexto de famílias que estão aí na condição de ameaçadas de despejo. Então, o primeiro destaque é com a retomada de políticas habitacionais e a própria promessa do Lula em retomar o “Minha Casa, Minha Vida”. 

Eu acho que é uma sinalização muito importante pra que a gente possa do ponto de vista estrutural superar as mais de 6 milhões de habitações que compõem o nosso déficit habitacional brasileiro.

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Em termos de urgência, é necessário que haja um fundo governamental que seja destinado especialmente para esse público ameaçado. E caso ocorram essas desocupações, haja um recurso que atenda as cidades, mas também nas zonas rurais, no campo, que também compõem os dados da Campanha. 

Existe ainda as emergências das chuvas. Esse é um problema que vem se repetindo e isso é a falta de planejamento urbano que, em grande medida penaliza a população. Então isso vai ser necessário. Em relação também a política de governo, é importante que haja um tipo de articulação interministerial. Não só com foco no Ministério das Cidades, mas no Desenvolvimento Agrário, Direitos Humanos e que dê conta dessa pauta dos conflitos fundiários. 

Além da superação das crises de saúde pública e econômica causadas pela pandemia de covid-19, quais caminhos você vê como possibilidade de ser construído com a sociedade civil para garantia efetiva dos direitos à cidade?

Me parece que esse é um tema que vai ser colocado na mesa, agora, novamente com o futuro governo. Inclusive, não só com a retomada dos Governos e Conferências, mas com a criação de novas formas. Novas ferramentas de participação da sociedade civil. Então, a própria Campanha sugere como medida estrutural a criação de uma ouvidoria federal que trate dos conflitos urbanos e agrários. 

Que seja fomentada a participação popular, por exemplo, com a possibilidade de você ter dentro do orçamento federal - daqueles que aplicam as políticas sociais (Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família) - um percentual desse destinado à participação, à fiscalização da comunidade, das famílias atendidas. Que a gente supere essa ideia de beneficiários dos programas sociais. Somos sujeitos. Sujeitos ativos, participativos. A sociedade precisa ter condições de participar. 

Somos sujeitos. Sujeitos ativos, participativos. A sociedade precisa ter condições de participar

Em um contexto de fome e desemprego, a urgência primeira é conseguir pagar a janta. Aquele famoso ditado, “você trabalha pela manhã para pagar a janta que vai comer à noite”. Com o novo governo, a participação popular vai estar recolocada, inclusive para a gente fazer as nossas lutas necessárias pelo nosso direito à cidade. 

Edição: Lorena Carneiro