O 20 de novembro, em que se celebra dia da Consciência Negra, marca uma das mais importantes datas da luta antirracista em nosso país. Mesmo com a Proclamação da República, a vida e os direitos da população negra ainda são atravessados pelos resquícios de um período escravocrata que traz duras marcas para a sociedade brasileira.
Para analisar os limites e desafios entre República, democracia e a questão racial no Brasil, conversamos com Luciana Brito, doutora em história pela Universidade de São Paulo (USP) e professora do curso de graduação e mestrado em história da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Especialista em escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e Estados Unidos e autora do livro “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista”, Luciana tem diversos artigos publicados e é também colunista do Nexo Jornal.
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Brasil de Fato Bahia: A historiografia tradicional nos conta que em 15 de novembro de 1889, um grupo de militares liderados pelo marechal Manuel Deodoro da Fonseca destituiu o imperador Pedro II. Sabe-se também que a República é proclamada na Câmara-Geral do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, e que um longo movimento republicano já tensionava o Império muitos anos antes da proclamação em si. Como começou o movimento de Proclamação da República no Brasil? Pode nos narrar o seu olhar sobre esse fato histórico?
Luciana Brito: Os questionamentos à monarquia acontecem desde a primeira metade do século XIX. A gente tem várias revoltas nos estados que, por diversos motivos, propunham a autonomia em relação à monarquia. Tanto por motivos de taxação de impostos quanto por motivos de movimentos liderados por diversas classes sociais que queriam instalar a República no Brasil.
Por exemplo, em 1837, na Sabinada, a gente tem a proposta de se criar uma república baiense. E o que é isso? Um movimento separatista na Bahia que visa a autonomia em relação ao Império. Então, sempre existiram movimentos que propunham o fim da monarquia ou que propunha a separação de determinada região ou estado em relação a Monarquia, em busca de mais autonomia e de participação de diversos setores sociais na política.
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Isso tem muita influência da Revolução Francesa e da Independência dos EUA. No caso da população negra, há também uma forte inspiração do Haiti que se tornou uma República em 1804. São diversos campos de interesse que desde o século XIX têm a intenção de vários setores de participar da política e de questionar a religião católica como a religião oficial do Estado.
O Brasil celebra em 2022, 133 anos da instalação de sua República. No entanto, há quem defenda que vivemos em uma grande República que ainda não pratica esses valores republicanos. Você concorda com esse ponto de vista? Quais os maiores inimigos da república?
Concordo plenamente que nós vivemos em uma República na qual não são respeitadas a regra do jogo. A República sai dos critérios monárquicos, da nobreza, da origem nobre, do “sabe quem está falando”, de quem é filho de quem, do fidalgo (do filho dalgo), e em tese a República propõe instalar-se num Brasil no qual as lideranças políticas da nação são escolhidas através do voto, em que as pessoas têm liberdade religiosa. Não há uma religião oficial e também todas as pessoas são cidadãs e têm acesso a direitos. Então, em tese é o que um regime Republicano garante ou propõe em termos de projeto de nação, em termos de organização de sociedade.
Sempre existiram movimentos que propunham o fim da monarquia, em busca de mais autonomia e de participação de diversos setores sociais na política
Então, nós vivemos em um regime republicano no qual, como nós podemos perceber até hoje, essas regras não são seguidas e ocasionalmente são manipuladas ou de forma muito seletiva implementadas para determinado grupo social, racial ou outro.
A República, por exemplo, quando ela é instalada em 1889. Somente um ano depois da abolição da escravidão, ela atrai setores diversos que tinham interesse na Proclamação da República. A gente tinha uma população liberta que também tem interesse de participar da política enquanto representação, mas a gente tem uma classe de cafeicultores ressentida com a abolição e muito interesse em entrar na política. A gente tem uma elite política também. E aí são homens brancos de elite que querem ter intervenção na política. Há uma classe intelectual que também é composta por essas elites, mas também não faz uma ruptura no sentido de fazer com que no Brasil todas as pessoas tenham os mesmos direitos e há críticas à abolição. Muitos apoiadores da República eram ex-senhores de escravos.
Então, a gente tem a abolição em 1888, a República em 1889 e 1890 a gente tem o Decreto da implementação do primeiro Código Penal do Brasil, que é justamente esse código que criminaliza diversas ações da população negra, como as práticas religiosas de Matriz Africana, a capoeira, o samba.
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Com isso, eu digo que os maiores inimigos da República são as pessoas que estão na ponta de lança dos poderes de decidir os rumos do Brasil. São as pessoas que ocupam cargos públicos, pessoas que têm poder de intervenção no Estado, na política e que embora estejam ali se favorecendo dos benefícios de um regime Republicano, no nosso caso do presidencialismo, estão ali por dentro minando o jogo democrático, a participação popular.
Quais relações existem entre a República, a Constituição e a democracia? Como a Proclamação conseguiu garantir mais participação popular e políticas públicas para os mais pobres?
A Constituição é o código de leis que regem a República. É a compilação de leis que regem a República. Então, em uma República não é o poder do Monarca que decide. O Monarca ou a Monarca vêm de uma descendência de pessoas que, por um poder divino, uma ancestralidade e escolha divinas, é quem vai dizer como serão as regras do jogo. Então, o que é que a Constituição faz: é a partir daquele documento que uma nação se orienta. Essa é a relação da Constituição na República.
Os maiores inimigos da República são as pessoas que estão na ponta de lança dos poderes de decidir os rumos do Brasil
E a democracia é o preceito de que todas as pessoas têm direitos e de que o Estado está comprometido com o bem-estar entre as pessoas. E garantir que a desigualdade seja, ainda que paulatinamente, uma meta do Estado como algo que deve ser combatido. Não há democracia plena com desigualdade. E não há República sem o respeito à Constituição.
Trazendo a reflexão para os nossos dias, quais entendimentos se fazem necessários para compreender a República contemporânea?
É necessário, é fundamental que hoje todo povo brasileiro entenda o que é a República, uma vez que nós temos ainda hoje setores na sociedade que legitimam reivindicações de privilégios de determinados grupos sociais, e isso tem enfraquecido a democracia.
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No caso da República, quando ela foi proclamada, nós temos uma herança muito maldita. Eu volto a citar o código penal de 1890. Ao mesmo tempo que se defendia o direito ao voto, o direito à participação política, um Estado que fosse regido por uma Constituição que tivesse por preceito a igualdade de todas as pessoas, a gente tem um outro movimento, também durante o início do período Republicano, um estado comprometido em manter as hierarquias raciais que já existiam desde a monarquia. Que já existiam também durante o período escravista.
Não há democracia plena com desigualdade. E não há República sem o respeito à Constituição
Então, nesse sentido, pouco a República rompeu com o regime anterior monárquico. A gente vê ali entre as elites um pacto de - ainda que numa sociedade pós abolição - as hierarquias raciais fossem mantidas e o código penal de 1890, que criminaliza diversas práticas da população negra, é um exemplo disso.
Estamos em pleno novembro negro, exatamente, no dia 20 de novembro, quando se celebra o dia da Consciência Negra. Já que estamos refletindo sobre a eficácia da República proclamada há mais de um século com o Brasil dos nossos dias, quais lutas ainda seguem em combate para o povo preto da Bahia?
Para compreender a República Contemporânea é preciso entender a história do Brasil. É preciso educação. Então, não é à toa que há tanto interesse do lado dessas pessoas que estão comprometidas com as desigualdades, com o enfraquecimento da educação, com o enfraquecimento do debate honesto, intelectualmente comprometido com o conhecimento. É isso que vai nos fazer compreender o que é direito, o que é liberdade e o que é República.
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No caso da Bahia e do Brasil para o povo negro, o que ainda está por vir em uma República é o comprometimento com os preceitos de igualdade, com os preceitos de um Estado que esteja voltado para as necessidades das pessoas mais frágeis, comprometido com a Igualdade Racial, com o direito de todas as pessoas. Com o direito das mulheres, das crianças, da comunidade LGBTQIA+, do cuidado com a saúde, com a educação. Do zelo com a coisa pública. Do entendimento do dinheiro público como um dinheiro público, da nação e que deve ser voltado para o bem-estar da nação.
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E no caso da população negra, especificamente, um Estado para ser republicano tem que estar atento a desigualdades profundas que ainda nos marcam e que se aprofundaram ainda mais durante a pandemia. O acesso ao emprego, as desigualdades que são escandalosas entre negros e brancos no Brasil, o genocídio de uma juventude negra. O estado, nesse caso, o Brasil e o estado da Bahia, onde está a maior população negra do país, deve estar comprometido com o fim de todas as desigualdades, mas sobretudo todas as desigualdades raciais que é aquela que nos estrutura.
Edição: Lorena Carneiro