Os conflitos no campo na Bahia têm aumentado nos últimos 10 anos, com crescimento mais expressivo desde o início do governo de Jair Bolsonaro. Embora os anos eleitorais historicamente sejam períodos em que não há um aumento, os dados parciais do relatório de conflitos no campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), publicados no último dia 24 de outubro, apontam que 2022 está sendo um ano atípico, com aumento do número de casos em relação ao mesmo período de 2021.
Na Bahia, por exemplo, após o primeiro turno das eleições, ao menos três ataques a comunidades camponesas foram registrados. O primeiro deles, no dia 12 de outubro, ao acampamento Antônio Maeiro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Itaetê, na Chapada Diamantina. De acordo com relatos de acampados, pistoleiros chegaram à noite no local, atirando a esmo. Eles puseram fogo nas plantações e nos barracos de lona. Pouco antes das eleições, a própria CPT relatou ataques às comunidades de fundo e fecho de pasto no município de Correntina, onde grileiros reclamam a posse de terras que pertencem há séculos a estas comunidades tradicionais.
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No sul do estado, o Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas (Mupoiba) relata que, no dia da comemoração do resultado das eleições, atearam fogo ao centro cultural da aldeia Barra Velha, pertencente ao povo Pataxó. Até o momento, não foram identificados os executores do crime.
Roseilda Conceição, da coordenação colegiada da CPT na Bahia, conta que, de 2020 para 2021, houve um aumento de 5,51% nas ocorrências de conflitos por terra. Esse tipo de conflito engloba despejos judiciais, as expulsões, invasões, grilagem, impedimento de acesso às áreas de uso coletivo, derrubada de casas, roças e cercas, entre outros. Os conflitos por água seguem na mesma tendência de aumento. Em 2021, a Bahia foi o estado com maior número de casos no Brasil todo, tendo um aumento de 208% em relação a 2020.
“Nesse tipo de conflito, registramos ameaça de expropriação, impedimento de acesso, destruição e poluição das águas. As manifestações também estão em crescimento. Aqui, registramos situações em que as comunidades buscam seus direitos e denunciam as opressões que vivem nos seus territórios”, completa Roseilda.
Ataque aos povos tradicionais
Até o momento, a pastoral já registrou 33 assassinatos decorrentes de conflitos do campo no Brasil em 2022. Na Bahia, o caso registrado foi o de Gustavo Silva Conceição, jovem pataxó assassinado em setembro dentro da terra indígena Comexatibá. Até o momento, ninguém foi preso pelo crime. O cacique Agnaldo Pataxó HãHãHãe, coordenador geral do Mupoiba, destaca que os povos indígenas especialmente no extremo sul do estado vivem uma situação de violência extrema ao longo de muitas décadas.
“Há uma violência muito grande. Na região extremo sul, há grandes empresas, como as de eucalipto, além disso há grandes monoculturas do café e outros. E isso tem avançado sobre as terras indígenas”, explica o cacique Agnaldo.
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Ele lembra que aquela também é uma região em que há uma tradição de pistolagem e perseguição a lideranças indígenas. Cacique Agnaldo cita a cacica Cátia, do povo Tupinambá de Belmonte, cujo filho foi morto em um acidente nunca elucidado em 2014. Cinco anos depois, seu enteado também desapareceu. Desde 2018, Cátia integra o Programa Federal de Proteção de Defensores de Direitos Humanos.
O coordenador geral do Mupoiba ressalta que a violação aos direitos dos povos originários na Bahia remonta à época da invasão de suas terras em 1500 e que essas violações seguem até hoje. “Ao longo do tempo também tem a perseguição aos Pataxó de Barra Velha, com o fogo de 1951, que tentou acabar com a aldeia e quase dizimou o povo. E de lá para cá não foi diferente, muitas lideranças presas, muito envolvimento de milícias, fazendeiros, pistoleiros. Então, o avanço sobre a terra dos parentes daquela região do extremo sul é muito grande. Além da violência física, sofre também a violência e preconceito institucional e racial”, destaca.
Responsáveis pelos conflitos
Além do agronegócio, identificada pela CPT e pelos povos do campo como um dos históricos causadores de conflito, outros atores têm surgido nos últimos anos nesse papel. Roseilda Conceição aponta que os últimos relatórios da CPT destacam a ação das mineradoras nacionais e internacionais e também empresas de energia eólica e grandes empreendimentos de energia solar, que entram nesse cenário utilizando os mesmos métodos violentos adotados pelos grandes fazendeiros do agro.
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Dentre tais métodos, Roseilda destaca as grilagens de terra, a pistolagem, as obstruções de acesso à água, a pressão da compra de terra, a criminalização das lideranças, as ameaças e violência explícita, muito utilizados pelos grandes empreendimentos contra as comunidades rurais e pesqueiras. “Além dessas violências, muitas dessas comunidades convivem diariamente com a contaminação de suas águas, a tentativa de destruição das suas nascentes, poeira e rachaduras em suas casas e o trânsito de veículos pesados nas áreas. Tudo isso é uma forte tentativa de destruição do modo de vida das comunidades e a retirada dos seus territórios. Existe uma forte sensação de insegurança e medo, mas as comunidades resistem, denunciam e buscam seus direitos, porque ali é o seu lugar”, ressalta.
A organização Agro é Fogo destaca ainda que, desde 2019, ficou evidente no Brasil o uso do fogo como arma nos conflitos do campo. Segundo a terceira fase do dossiê Agro é Fogo, lançado no último dia 13, a Bahia está em terceiro lugar no número de ocorrências de conflitos com fogo. Junto com os estados do Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Rondônia, somam mais de 50% de todos os conflitos com fogo do país.
Um dado que chama atenção nesse relatório é que as comunidades de fundo e fecho de pasto, apesar de se encontrarem somente no estado da Bahia, sofreram 5% de todos os conflitos com fogo do país em 2021. Eduardo Lima, coordenador político da Central de Associações de Fundo e Fecho de Pasto da região de Senhor do Bonfim (CAFFP), explica que os maiores atores desses conflitos são também o agronegócio, a mineração e mais recentemente as empresas de energia eólica. Eduardo ressalta ainda que a grilagem de terras tem sido a principal arma dessas empresas contra as comunidades.
A CPT, o Mupoiba e a CAFFP concordam que, nesse cenário de crescimento dos conflitos no campo, o papel das organizações e movimentos do campo é essencial para fazer frente às violações de direitos.
“Assim como a CPT, entidades e movimentos dão assessoria a essas comunidades rurais e pesqueiras, na tentativa de garantir a justiça e demarcação de seus territórios, nas mobilizações, nas denúncias de violências, na reivindicação de políticas públicas, e outras ações. A defesa e garantia dos direitos dos povos do campo se faz necessária nesse contexto de violência que se mostra no nosso país”, defende Roseilda Conceição.
Edição: Lorena Carneiro