A Bahia tem cerca de 11% da sua população em situação de fome, segundo dados do II Inquérito Nacional da Insegurança Alimentar no Brasil no Contexto da Covid-19 (VIGISAN) realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), em 2022. Embora o estado tenha um contingente de 1,7 milhão de pessoas com fome, a Bahia apresenta um índice melhor do que o do Brasil, que é de 15,5% de pessoas em insegurança alimentar, e o do nordeste, que é de 21%.
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Os dados da pesquisa da Rede Penssan não mostram claramente o motivo de a Bahia ter atingido tais índices. É o que aponta Silvio Porto, ex-diretor de Política Agrícola e Informações da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Porto também já foi membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e participou da equipe que elaborou o programa Fome Zero. Atualmente, é professor do curso de Educação do Campo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
O pesquisador destaca, no entanto, que é possível inferir que o fato de a Bahia ter uma população rural ligada à agricultura familiar camponesa contribui para esse cenário. “No caso específico da Bahia, possivelmente, nós temos uma capacidade de autonomia alimentar, ou uma relação de produção e disponibilidade de alimentos nessas residências rurais talvez mais vantajosa. Estou dizendo talvez porque precisaria ser efetivamente aferido”, afirma.
Políticas públicas
Silvio Porto aponta ainda a importância do papel das políticas públicas de estímulo à produção de alimentos para a agricultura familiar camponesa. “Há políticas públicas por parte do estado que vêm contribuindo, como o Pró-Semiárido, e o trabalho que a Articulação do Semiárido (ASA), da Bahia, especificamente, vem desenvolvendo desde 2003”, explica o pesquisador.
O Pró-Semiárido é uma política pública do governo do estado da Bahia de estímulo à convivência com o semiárido. Presente em 32 municípios do estado, o programa disponibiliza assistência técnica e extensão rural (ATER) especializada e acesso a política públicas como Luz para Todos, Minha Casa Minha Vida, Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), além de fomentar as atividades de segurança hídrica, como armazenamento de água e produção sustentável de base agroecológica.
Esses também são os princípios que norteiam a atuação da ASA, uma rede que congrega organizações civis como sindicatos rurais, associações de agricultores, cooperativas, ONGs etc., nos dez estados brasileiros que compõem o semiárido.
Uma das principais ações da ASA, citada por Silvio Porto inclusive, é o programa Um Milhão de Cisternas, que leva cisternas de armazenamento de água potável para as propriedades de famílias de pequenos agricultores e agricultoras no semiárido. “Quando a gente apresenta à sociedade o programa Um Milhão de Cisternas tendo como primeira ação a água para beber, naquele momento, a ASA estava apresentando à sociedade brasileira e ao Estado brasileiro um programa que garante um elemento fundamental para a alimentação das populações do semiárido, que é a água de qualidade e em quantidade suficiente para suas necessidades básicas”, explica Kleber Félix, membro da Coordenação Nacional da ASA.
“Em segundo lugar, nós apresentamos o programa Uma Terra e Duas Águas, ou Água para produção. Então, nós trabalhamos na perspectiva de que todos os agricultores e agricultoras que vivem no semiárido brasileiro têm direito à terra e à água para produzir alimento para suas famílias, para abastecer as feiras locais e até, em determinadas situações, poder encaminhar para outros grandes centros do Brasil”, conta Félix. Ele ressalta ainda que esses dois programas garantem a produção de alimentos saudáveis no semiárido, uma vez que a própria ASA estimula a produção agroecológica nessas unidades familiares.
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Silvio Porto destaca que é essa agricultura camponesa quem produz os alimentos que chegam à mesa das famílias brasileiras - o arroz, feijão, mandioca, frutas, verduras - e não o agronegócio, responsável pela produção principalmente de commodities, como soja, algodão e milho, negociados e vendidos no mercado exterior.
“Nós precisamos reverter essa situação, há que ter uma política voltada sobretudo para a produção de alimentos básicos, para uma produção de alimentos diversificada, agroecológica nos diversos territórios brasileiros. E focar, com isso, em uma política de abastecimento também para a população de baixa renda das favelas, população de baixa renda das grandes e médias cidades, que são as famílias mais afetadas quando comparados os dados de insegurança alimentar, ou dados de fome no Brasil”, explica.
Retrocesso no país
Por outro lado, Kleber Félix aponta o desmonte das políticas públicas por parte do governo do atual presidente Jair Bolsonaro como um dos fatores principais para o aumento da fome no país. “Existe uma demanda reprimida no semiárido brasileiro de 350 mil famílias que não têm ainda acesso a água de beber e estimamos que 800 mil famílias ainda precisam da água para produção de alimentos. Infelizmente, nos últimos anos o governo federal praticamente destruiu o programa Água para Todos. Não é à toa que mais de 33 milhões de brasileiros estão morrendo de fome nesse país”, diz Félix.
Para sair novamente do mapa da fome, Silvio Porto aponta como fundamental a articulação entre políticas públicas das três esferas de governo, federal, estadual e municipais. Os municípios, por exemplo, são responsáveis pela articulação em nível local das políticas públicas, sobretudo na promoção de feiras agroecológicas e da agricultura familiar, qualificação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) a fim de garantir que boa parte do recurso seja efetivamente aplicado na compra de alimentos da agricultura familiar camponesa
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O pesquisador Silvio Porto explica ainda que é muito importante que haja, nos próximos anos, uma recomposição do valor do salário mínimo, que possibilite às famílias voltarem a se alimentar adequadamente.
“E, junto com isso, uma política agrícola efetiva, que faça com que nós tenhamos um fomento à produção agroecológica, uma produção diversificada em todo o território nacional, de forma a diminuir as distâncias entre produção e consumo e permitir que as pessoas possam consumir, com qualidade, alimentos frescos, todos os dias, abastecidos principalmente a partir de uma rede de abastecimento popular que chegue até as grandes cidades. E, dessa forma, nós possamos democratizar o acesso aos alimentos, democratizar a economia e reverter a lógica do desenvolvimento concentrado nas grandes corporações”, finaliza.
Edição: Lorena Carneiro