Você já leu algum livro escrito por autor ou autora indígena? Conhece quem são os escritores e escritoras indígenas que estão produzindo literatura no Brasil? Atualmente, é possível contar mais de 60 autores indígenas em todo o país produzindo livros que estão disponíveis no mercado editorial, além de editoras e até mesmo livrarias especializadas em literatura produzida pelos povos originários brasileiros. Quem nos conta isso é Trudruá Dorrico, indígena macuxi e uma dessas 60 autores. Ela também é doutora em Teoria da Literatura, consultora de comunicação do Museu das Culturas Indígenas e colunista da Ecoa UOL.
Apesar de toda essa oferta, esse ainda é um seguimento da literatura desconhecido de boa parte do público. Para Trudruá Dorrico, esses livros só começaram a ser vistos e reconhecidos pelo público há cerca de 10 anos. “A literatura indígena é um advento de 33 anos, contado a partir da Constituição Federal, que reconhece o direito do indígena atuar na sociedade sem perder a sua identidade”, explica Trudruá.
Ela explica que essa literatura indígena surge a partir do reconhecimento do direito à identidade indígena e à cidadania brasileira trazido pela Constituição de 1988, por isso não é possível falar de um movimento literário indígena anterior a essa data. Nos anos 70 e 80, inicialmente, foram produzidos muitos livros de autoria indígena coletiva, a partir de projetos ou políticas públicas, que tinham como foco o letramento de diferentes povos indígenas.
Dentre esses, Trudruá destaca um projeto da Comissão Pró-Índio, do Acre, que trabalhou com uma grande diversidade de povos na produção de livros destinados ao letramento. “Os professores e estudantes desse projeto produzirem livros bilíngues, inclusive, o que era extremamente revolucionário pra década de 70-80. E esse projeto de autoria coletiva foi modelo para educação escolar indígena”, conta.
Para além dessa autoria coletiva, a literatura indígena também é composta pelos livros de autoria individual. “Tem a autoria individual, que é a autoria de sujeitos indígenas que têm direitos políticos como civis, como Daniel Munduruku, Aílton Krenak, Eliane Potiguara, e ela mesma, Trudruá Dorrico, que tem textos publicados em antologias com outros escritores indígenas, além de um livro de poesias em publicação solo, chamado Eu sou macuxi e outras histórias.
Oralidades
Mas, na literatura indígena cabe ainda uma outra forma de autoria, a autoria coletiva da oralidade. Trudruá explica que essa forma de literatura está ligada aos saberes imemoriais, patrimônios coletivos e imemoriais de um povo. “Elas [as narrativas orais] nunca foram respeitadas na história do Brasil, e ainda hoje são utilizadas como propriedade de qualquer pessoa, menos dos povos indígenas. A gente testemunhou e testemunha o esbulho da nossa espiritualidade que foi folclorizada e transformada em uma outra matéria para criar uma cultura nacional sem povos indígenas”.
A escritora e pesquisadora macuxi explica ainda que, atualmente, os autores indígenas têm retomando essas narrativas para recontá-las de maneira mais sensível, com compromisso político, espiritual, social, cultural com as narrativas do povo, retirando delas a pecha de “folclore” e lhes devolvendo o status de espiritualidade. “Essa é uma autoria coletiva que sempre existiu, é milenar, nasce na terra, passa pelo corpo e volta pra terra. É algo muito sagrado, algo muito reverenciado”, conta.
A oralidade, nesse caso, não é o oposto da escrita alfabética da língua portuguesa, mas sim está ligado ao modo de vida que se expressa por meio de uma língua. “Não aceito que as pessoas digam que somos povos ágrafos — que foi um dos paradigmas utilizados pra tentar nos extinguir ou pra tentar nos ‘civilizar’—, porque a gente também tem sistemas de escrita que estão para além da escrita alfabética”, defende.
Trudruá finaliza defendendo uma literatura de caráter indígena, que, com maior ou menor aproximação com a forma de escrever ocidental, defende uma forma de vida indígena. “O livro indígena, a escrita indígena, a narrativa indígena é essa que — embora utilize a língua portuguesa, ou outras línguas de expressão autoritária — traz consigo essa linguagem e esse modo de vida que nos diferencia desses Estados-nações que não reconhecem a nossa existência enquanto populações originárias”.
Edição: Lorena Carneiro