Bahia

ENTREVISTA

O que de fato significa a Independência do Brasil?

A historiadora Wlamyra Albuquerque analisa os sentidos do 07 de setembro e o papel da Bahia na nossa Independência

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
A historiadora questiona os sentidos de nação e o impacto da independência para as pessoas escravizadas - Adilton Venegeroles

A história é viva e passa por uma grande batalha de narrativas. Uma batalha sobre como os fatos são vistos, percebidos, registrados e contados ao longo do tempo. Toda efeméride, todo fato importante ocorrido em determinada data, se repete e se conclama para nos fazer pensar. Por isso, no Bicentenário da Independência do Brasil, o Brasil de Fato Bahia pensa essa data tão simbólica para o povo brasileiro a partir do olhar e do ponto de vista da historiadora Wlamyra Albuquerque. Wlamyra é doutora em história social da cultura pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora adjunta da Universidade Federal da Bahia (UFBA).  

Brasil de Fato Bahia: Embora o grito de independência tenha se dado em 7 de setembro de 1822, o Brasil manteve várias das instituições do período anterior. A Independência não foi, propriamente, uma ruptura radical com o passado. Então o que de fato significa a Independência do Brasil? Se não desvinculamos totalmente os nossos laços coloniais com Portugal, de que conceito de independência estamos falando?

Wlamyra Albuquerque: Como a gente costuma falar na história, a gente sempre precisa pensar nos processos de mudança como processos que têm continuidades e tem rupturas. Então, foi um momento muito importante. Foi um momento de fundação do Brasil independente, mas isso não quer dizer que todas as formas e instituições portuguesas foram abandonadas. A língua foi mantida, o corpo jurídico, um conjunto de normas e leis foi mantido e, principalmente, a instituição que funda, que organiza a estrutura social do Brasil naquela época foi mantida, que foi a escravidão. Essa talvez, seja uma das questões mais importantes pra gente pensar o que significou de rompimento e o que significou de continuidade com o processo de independência. A escravidão.

Por falar em escravidão, qual o impacto da independência brasileira para as pessoas escravizadas? O que a independência significou para as populações negras e indígenas do Brasil?

Todo processo de luta pela emancipação política do Brasil, pela Independência, ele significou também uma forma que essas populações – tanto as escravizadas, quanto as populações negras nascidas livres e alforriadas – de se colocarem dentro de um plano nacional de si, de construir um projeto ou projetos sobre o que seria o Brasil que se desejava. O Brasil que se pretendia construir. Porque o processo de Independência mobiliza duas questões muito importantes. A primeira delas é o que é a liberdade? E o que é liberdade para as populações escravizadas poderia significar alforria. A liberdade para as populações negras nascidas livres ou que já tinham conquistado a sua alforria poderia significar participação política, possibilidade de ascensão social, possibilidade de exercer cargos públicos. 

Então, o que a gente vê é que todo esse processo de emancipação evidenciou quais eram os projetos que estavam sendo colocados em pauta. Uma outra questão que vai ser mobilizada é o próprio sentido do que é nação. O que a gente está definindo como nação. Essa era também uma questão muito importante para as pessoas escravizadas que vinham de outras nações, assim como para as populações negras nascidas no Brasil. Ali, naquele momento, pensando de que maneira eles fazem parte dessa comunidade nacional.     

Qual o papel da Bahia nesse enfrentamento da Independência?

A Bahia teve um papel muito importante na consolidação desse processo de Independência que não foi finalizado no Sete de Setembro. As lutas que ocorreram na Bahia só vão ser concluídas em 1823, quase um ano depois do processo de Independência, e isso mostra como havia uma centralidade, havia uma atenção muito grande em que poderia acontecer com a presença dessas tropas portuguesas na Bahia de Todos os Santos. Então, era estratégico para essas tropas portuguesas controlar o Porto de Salvador e garantir ainda algum tipo de soberania do império português. As lutas que aconteceram na Bahia foram muito importantes e o fato delas terem sido tão relevantes é que vai fazer com que se crie todo um calendário cívico, patriótico, popular que até hoje leva milhares de pessoas à ruas no Dois de Julho. Então, o Dois de Julho é parte significativa desse processo de luta que começa no Sete de Setembro, mas que não se conclui efetivamente neste dia. 

A Independência do Brasil ocorreu no contexto da independência de vários países da América do Sul: a Argentina se tornou independente em 1810; a Colômbia, a Venezuela e o Paraguai, em 1811; o Chile, em 1818; o Peru, em 1821; e o Equador, em 1822. O fato desses movimentos separatistas terem ocorrido no mesmo intervalo de tempo é mera coincidência? 

Excelente pergunta essa sobre o processo de independência nas Américas. O que aconteceu na América Espanhola - aquela América que foi colonizada pela Espanha - e o que aconteceu no que a gente chama de América Portuguesa, no Brasil, que foi colonizado por Portugal.  Há realmente uma sincronia entre esses processos de independência e isso não é uma coincidência. Isso é parte de um movimento. A história sempre anda de uma maneira sincrônica. 

É como se a gente pensasse num objeto que está em movimento, mas ao mesmo tempo está tentando se encaixar. Então, não dá pra imaginar que é uma coincidência o fato da Argentina, Chile, Bolívia, todos os outros países da América espanhola estarem num processo de Independência próximos e que o Brasil tenha chegado também nesse movimento. O Brasil se torna independente de Portugal em 1822 – 1823 e isso, com certeza, tem a ver com a ideias liberais que estavam circulando, com a própria mudança econômica que estava acontecendo na Europa. Disputas entre Portugal e Espanha, o predomínio da Inglaterra, enfim... uma história bem complexa essa, mas a gente tem que pensar quando se fala sobre a Independência do Brasil que isso está posto no outro quadro mais geral que é o processo de Independência das Américas.  

Muitas regiões do mundo ainda lutam por independência: a Catalunha, por exemplo, quer se separar da Espanha; o Tibete, da China e por aí vai. Qual é hoje a importância de um país ser independente e quais são os limites desejáveis disso? 

Eu acho que hoje, quando a gente olha para esses processos de independência, para essas lutas separatistas que estão acontecendo na Europa, a gente tem que pensar que não se trata do mesmo processo que aconteceu nos séculos XVIII e XIX, nas Américas. A gente está falando, hoje, sobre novas formas de definir o que é uma nação. Outras formas de definir o que é liberdade. Se a gente colocasse isso em uma escala global, eles se comunicam. Se a gente imaginar que todas as ideias sobre Independência nacional, sobre a liberdade das nações, sobre os interesses comerciais, sobre os interesses políticos dos países eles estão sempre afinados, desde os séculos XVII, XVIII. No entanto, para gente pensar, hoje, o que acontece na Espanha, o que acontece na China, a gente precisa entender que estamos em outro momento da história mundial, em que as próprias definições do que são as fronteiras de um país, o que define liberdade pra um país são dados em outros termos.  

Como parte das comemorações dos 200 anos da Independência, o coração de D. Pedro I está no Brasil para uma exposição no Palácio do Itamaraty, em Brasília.  Esta é a primeira vez que o coração de D. Pedro deixou Portugal.  O que você acha desse acontecimento?  Faz sentido celebrar o Brasil que nos tornamos?

Eu acho que essa vinda do coração de D. Pedro como parte das comemorações dos 200 anos é um dos episódios mais bizarros que a gente já viu na história de humanidade. Eu acho que há aí uma tentativa frustrada, e desde já fracassada, de reafirmar o processo de independência como parte de um esforço do próprio governo português, o que – de fato – não aconteceu. O processo de independência teve muitos protagonistas e, com certeza, as populações – principalmente as populações pobres e indígenas – tiveram um papel relevante e foram muito mais eficientes no processo de ruptura desse laço colonial do que D. Pedro, agora representado por seu coração. Lamentável que quando a gente está discutindo os 200 anos da nossa independência seja gasto com dinheiro público recursos para trazer de volta ao país o coração do monarca português. Eu, sinceramente, acho que isso vai constar nos futuros livros de história como o episódio mais bizarro que já se registrou na história mundial em relação ao reforço de um vínculo colonial quando a gente – na verdade – celebrando a independência. Lamentável.      

Edição: Lorena Carneiro