Bahia

ENTREVISTA

"A lei 12.711/2012 trouxe uma transformação importante nas universidades", afirma Dyane Brito

Entrevista da semana tem como tema o legado dos 10 anos da Lei de Cotas no Brasil

Brasil de Fato | Lençóis (BA) |
Dyane Brito é doutora em Educação pela UFBA e atuou como pesquisadora da Unesco e do MEC na avaliação das ações afirmativas no ensino superior. - Rafael Martins

Este ano, a Lei de Cotas completa 10 anos. Em seu texto está previsto que o Legislativo pode fazer uma revisão e até mesmo anular a lei após essa primeira década. Sob ataque mesmo antes de sua criação, a Lei 11.712 foi responsável pela democratização do acesso à universidade pública e também aos institutos federais. Para nos falar sobre o legado trazido pela Lei de Cotas para as universidades e para a sociedade como um todo, entrevistamos a professora Dyane Brito, diretora do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), ela atuou como pesquisadora da Unesco e do MEC na avaliação das ações afirmativas no ensino superior e como consultora do Unicef para a implementação da Lei 10.639/03 na região do Semi-Árido Brasileiro. É ainda vice líder do Observatório de Política Social e Serviço Social (OPSS) da UFRB e membro pesquisadora do Programa A cor da Bahia (UFBA).

Brasil de Fato Bahia: Professora, muito obrigada por ter aceitado nosso convite. Em 2022, a Lei de Cotas completa 10 anos, sob sérios ataques e ameaças. Poderia nos explicar brevemente qual o papel dessas políticas afirmativas e o impacto delas para as universidades e para a sociedade de maneira geral.

Dyane Brito: A lei 12.711, também conhecida como Lei de Cotas, foi criada em 2012, mas é importante dizer que ela não é a primeira experiência de políticas afirmativas no ensino superior brasileiro. Na verdade, essa experiência começa a partir de 2002, quando as universidades passam a adotar algum sistema de política afirmativa para ingresso no ensino superior. É bem verdade que, naquela época, algumas universidades começam com cotas raciais, foi o caso da Universidade da Bahia (Uneb), por exemplo. E outras universidades faziam uma espécie de bonificação por pontos. Os estudantes que vinham de escola pública, nesse sistema, tinham uma pontuação diferenciada para o acesso ao ensino superior. Em 2007, os dados do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro documentavam 79 universidades públicas que adotavam algum tipo de inclusão no vestibular. Os dados do Inep de 2008 falavam que das 236 instituições de ensino público superior que havia no Brasil, cada uma adotava critérios variados, normas variadas, mas todas com processos de inclusão. Mas aquelas que adotavam especificamente as cotas étnico-raciais somavam 54 instituições, das quais 34 tinham medidas afirmativas para negros e negras. Então, a gente está falando de uma política que começa lá em 2002, por força do projeto de lei, e que vai, 10 anos depois, se institucionalizar na lei 12.711, uma lei federal, que traz o critério das cotas raciais, da origem escolar, da renda familiar, como critérios para acesso às universidades públicas e aos institutos federais. Falar da lei 12.711 é necessariamente falar  do sistema educacional brasileiro e do histórico processo de exclusão e discriminação da população negra dentro desse sistema. Se por um lado a gente já observava há algumas décadas uma expansão do sistema educacional, na contramão disso estava a participação da população negra. E mais especificamente dentro do sistema superior, e mais especificamente ainda dentro do sistema público do ensino superior. Além desse problema do acesso, nós já identificávamos, diversos pesquisadores, as questões de permanência dentro desse sistema, havia e há problemas com relação à discriminação, à exclusão, ao insucesso, o trajeto do estudante negro e negra na educação como um todo e no ensino superior em particular estava marcado por diversas dificuldades material, quanto de ordem simbólica. Mas, voltando um pouco mais atrás, isso não é uma situação que só foi identificada nos anos 80, 90. A gente precisa também discutir que a educação sempre foi uma das principais reinvindicações do movimento negro. Isso esteve associado à educação formal, como uma bandeira de luta que existe desde o pós-abolição, mas que vai ganhar mais força no século XX. Não podemos esquecer que na década de 1920, os primeiros jornais do meio negro, no estado de São Paulo, já discutiam as condições sociais de existência do povo negro no pós-abolição, assim como os problemas ligados à discriminação racial. Então se entendia que a educação formal era a principal possibilidade, a principal caminho pra superação das dificuldades em que se encontrava a população negra brasileira. 

Dyane, qual foi o contexto histórico-social em que a Lei de Cotas foi criada? Qual foi o papel dos movimentos organizados para que ela fosse de fato implementada?

Um dos trabalhos que traz esse elemento com muita força, uma descrição densa e bem feita, é o trabalho de Sales Augusto de Santos, defendido em 2007 na UnB, em que ele faz uma descrição importantíssima sobre o papel dos movimentos sociais negros no que diz respeito à educação, inclusive que vai desembocar nessas políticas afirmativas em 2002. Lendo Sales, a gente precisa resgatar o que é a Frente Negra Brasileira, nos anos 30, por exemplo, que já tinha a educação entre as suas condições necessárias para uma ascensão e para o que chamou de “progresso material da população negra”. Isso vai ser formalizado no estatuto da Frente Negra Brasileira. Na primeira metade do século XX, nós contávamos com um projeto de políticas compensatórias do deputado federal Abdias do Nascimento. Naquela época, não tínhamos uma bancada negra dentro do Congresso Nacional, mas Abdias estava lá e era a principal voz dos movimentos negros no legislativo. E foi no ano de 1987 que ele lançou o projeto de ações compensatórias para negros, mulheres e indígenas na esfera da educação. Esse projeto tramitou, mas nunca foi votado, foi engavetado. Só mais tarde que a gente vai ter, em 2002, a primeira proposta de políticas afirmativas efetivamente implementado. A gente veio observando até aqui, com saltos históricos, que ela não é a primeira proposta, mas ela é efetivamente a primeira que é implementada. E não é implementada do nada. É também interessante que a gente note como há um contexto de luta e de mobilização dos movimentos negros nesse período para efetiva implementação nos primeiros anos do governo de Luís Inácio Lula da Silva, em 2002. No governo anterior, a gente tem uma discussão, que gera uma movimentação importante. No final dos anos 90, a gente tem a conferência mundial contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerâncias correlatas em Durban. É nesse momento que o Brasil um plano nacional para o combate ao racismo na educação. E a gente tem também a marcha que reuniu cerca de 30 mil participantes que vão ser recebidos na sede do governo brasileiro, naquela época, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Mais uma vez, as lideranças do movimento denunciam ao governo brasileiro a discriminação racial, condenam o racismo e entregam ao chefe do executivo o Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial, que continha propostas de combate ao racismo.

Passados esses dez anos, podemos dizer que a política de cotas deu certo?

Sem dúvida, a lei 12.711/2012 trouxe uma transformação importante nas universidades brasileiras. Desde 2002, nós temos um conjunto de trabalhos, de pesquisa, de artigos que têm se debruçado a respeito das políticas afirmativas no ensino superior brasileiro. Mas é a partir de 2012 quando isso se intensifica, claro proporcionado pela lei 12.711, pela Lei de Cotas, e à uniformização nas modelagens de acesso ao ensino superior e técnico que ela causou no país. Essa política proporcionou aos estudantes da escola pública, das camadas menos favorecidas, dos autodeclarados negros, indígenas e quilombolas uma igualdade de acesso nas universidades. E por conseguinte, uma maior diversidade nas salas de aula das universidades brasileiras. Estudos recentes apontam como o perfil do discente mudou nas instituições de ensino superior, sobretudo entre 2012 e 2016. Um estudo de 2022, de Senkevisc e Melo, nos mostra como a proporção de pretos, pardos, indígenas provenientes do ensino médio público aumentou consideravelmente nas instituições de ensino superior. Essa pesquisa demonstra, a partir de uma análise de dados do Enem, e também do Censo da Educação superior, que antes da Lei de Cotas entrar em vigor, 55% dos ingressantes das instituições federais eram oriundos do ensino médio público. Quatro anos depois, esse percentual salta para 64%. Então, é um salto importante, e se a gente foca o olhar somente para os pretos, pardos e indígenas, esse número tem um salto de 10%, sai de 28 para 38% ingressantes nesse mesmo período. É talvez o maior crescimento relativo entre todo o público-alvo da lei. Mas ainda que nós não olhássemos para essas pesquisas, ainda que não olhássemos para esses dados, as salas de aula das universidades públicas brasileiras modificaram, sobretudo, nos cursos de alta demanda, também conhecidos como cursos nobres. A gente olha para as salas de Direito, para as salas de Medicina, para as Engenharias que, a partir de 2016, vai ter uma mudança importante nesse perfil. Então, é algo que precisa ser considerado. E falando nos cursos chamados de nobres, há uma pesquisadora baiana, chamada Cláudia Monteiro, que tem se debruçado sobre esse cenário, a partir dos dados quantitativos, e ela demonstra, por exemplo, em 2022, na sua tese, que os estudantes cotistas que ingressaram nos cursos chamados nobres permaneceram nesses cursos. Isso é um salto imenso na realidade do ensino superior público brasileiro. Então, a lei 12.711, a Lei de Cotas, é importante para mitigar o racismo, coibir as desigualdades raciais no acesso à educação superior no Brasil, e ela tem uma relevância política no conjunto da sociedade brasileira.

Recentemente, as políticas de permanência universitária (ajuda de custo a estudantes de baixa renda, bolsas de pesquisa/iniciação científica, etc.) sofreram grandes cortes de verbas. Podemos considerar isso também como um ataque à política de cotas?

Nos últimos anos a gente tem vivenciado cortes importantes nas universidades brasileira. Mesmo quem não está na comunidade acadêmica, ouve nos jornais os cortes que têm sido feitos anualmente  para pesquisa no Brasil, para o funcionamento das universidades. São cortes no custeio, no investimento, cortes no orçamento da universidade, que ameaçam a qualidade de vida universitária. Porque, quando esses cortes atingem o Programa Nacional de Assistência Estudantil, é menos alimentação que as universidades podem oferecer, é menos vaga nas creches que a universidade pode oferecer. Enfim, são menos auxílios que garantem a permanência. A gente vem também experienciando um conjunto de ações, mas que ainda são muito poucas, de programas de permanência, como foi o Programa Conexão de Saberes e mais tarde o Programa Bolsa Permanência. Mas, sem dúvida, esses programas não conseguem ainda atender à totalidade de jovens que ingressam na universidade e que precisam de auxílio. Então, se debruçar para permanência no ensino superior como política afirmativa é essencial e necessário. Eu fui citando os auxílios, que eu tenho chamado desde 2016 de “permanência material”, que são essas possibilidades que os auxílios dão de comer, beber, de se deslocar para a universidade, mas há também um conjunto de ações que a gente denomina de permanência simbólica. Isso significa, por exemplo, olhar o currículo das universidades. As universidades estão mais diversas, sim, há uma diferença no perfil do discente que ingressa na universidade brasileira, e o currículo também precisa acompanhar isso. Temas que foram tabus na educação brasileira e que têm sido tocados na universidade e que precisam integrar esse currículo: gênero, raça, diversidade de um modo geral, diversidade sexual, sexualidade, enfim todos temas que precisam ser abordados, que precisam ser estudados. Autores e autoras que precisam entrar no currículo, autores negros, autores não europeus que precisam ser debatidos nas salas de aula brasileiras. Então, falar em permanência é falar em auxílio, é falar em assistência estudantil, mas é também falar em permanência simbólica.

Na lei 12.711/2012 não está estabelecida a obrigatoriedade de uma revisão após dez anos da lei, apenas a possibilidade de que isso aconteça, correto? Uma revisão, no atual contexto social e político, é viável? Há algum ponto da lei que poderia ser melhorado?

Ao longo desses anos, nós vimos o debate sobre cotas raciais ganhar a sociedade brasileira como um todo. Está na sala de aula, mas também esteve na praça, esteve nas reuniões de condomínio, entre vizinhos, esteve na sociedade mais ampla. O debate dividiu opiniões. Nós vimos argumentos favoráveis e contrários às cotas. Nós vimos intelectuais, ativistas, artistas favoráveis ao sistema, mas vimos também membros dessas categorias falarem contrários a essa política. Nós vimos a política ser implementada, nós vimos a Lei de Cotas aparecer, nós vimos um conjunto de políticas de ação afirmativa crescer no país e nós vimos, sobretudo, uma mudança significativa no âmbito da educação brasileira. É certo também que 2022 não é um ano fácil para que alguns debates sejam implementados, e no âmbito do Legislativo brasileiro, a gente tem observado propostas de extinção da política de de cotas, propostas de extinção do caráter racial, mas também propostas que querem trazer a lei como um elemento permanente, propostas que vêm a necessidade de uma revisão nacional da política, proposta de ampliação do prazo para revisão nacional. E um projeto de lei do senador Paulo Paim, a PL 4656, que estabelece a revisão das cotas a cada dez anos, mas também propõe que elas sejam aplicadas aos processos de seleção dos cursos de graduação das instituições particulares. O fato é que  qualquer revisão na Lei de Cotas é um golpe na sociedade brasileira, qualquer redução nas políticas afirmativas é um retrocesso na sociedade brasileira. Muitos passos foram dados, esses caminhos veem de muito longe, a força dos movimentos sociais pra essa implementação, todo o processo até aqui, e que não se pode permitir que qualquer passo atrás, qualquer passo a menos nessa lei que traz avanços no acesso ao ensino superior brasileiro. Há um crescimento muito significativo de pretos e pardos, de negros, portanto, no ensino superior. A lei precisa, sim, ser ampliada para garantir a permanência no ensino superior brasileiro e, claro, essa permanência é de ordem material. E, pra isso, a gente precisa precisa de investimentos que permita auxílios, que garanta o acesso ao ensino, pesquisa e extensão, mas também que possa permitir outros elementos de formação que vão garantir a permanência simbólica nas universidades.

Edição: Elen Carvalho