Bahia

ENTREVISTA

"Estou aqui só de passagem, mas pretendo desfilar na vida", diz Vovó Cici em entrevista

Mestra griô e herbolaria, aos 82 anos Nancy Silva relata como se tornou contadora de histórias

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
Em março deste ano, Vovó Cici recebeu o Título de Cidadã soteropolitana pela Câmara Municipal de Vereadores de Salvador. - Divulgação

Aos 82 anos, Nancy de Souza e Silva ou a Vovó Cici, como é conhecida, relata um pouco de sua trajetória até chegar a ser contadora de histórias. Mestra griô e pesquisadora no Espaço Cultural Pierre Verger, no bairro do Engenho Velho de Brotas, em Salvador, Vovó Cici veio para a Bahia em 1972 para se iniciar no candomblé. Hoje é egbomi do Ilê Axé Opô Aganju em Lauro de Freitas, Apetebi no culto de Ifá e herbolaria - conhecedora das propriedades medicinais das plantas e magias dos cantos que despertam as propriedades das folhas. No mês de março deste ano, recebeu o Título de Cidadã soteropolitana pela Câmara Municipal de Vereadores de Salvador. Através das histórias afro-brasileiras contadas a partir dos animais, a “desfilar pela vida” e “andando pelo mundo”, como ela mesmo diz, Vovó Cici encanta crianças e adultos, e afirma “a minha história é para quem quiser escutar. Não é para um público específico, é pra quem quiser escutar e quem quiser conhecer”. Confira a entrevista.

Brasil de Fato Bahia: Quem é a dona Nancy Silva ou a Vovó Cici?

Nancy de Souza e Silva: Eu sou a Vovó Cici, aqui do Espaço Cultural Pierre Verger. Sou contadora de histórias da cultura afro-brasileira, nascida no Rio de Janeiro. Há poucos dias recebi o título de cidadã soteropolitana. Nasci no Rio, no bairro da Tijuca, mas eu já vivo aqui na Bahia há cinquenta anos, o tempo que eu vim fazer meu orixá. Então eu tenho 82 anos, mas no Rio eu vivi só até os 32. Então a maior parte da minha vida é aqui na Bahia. Onde eu me encontrei de toda forma, como ser humano, foi aqui que eu me encontrei e essa cidade cheia de magia, que até então só via cantar, só via na literatura e hoje eu posso sentir o que realmente eles contaram, eles falaram de suas andanças por aqui, os brasileiros e os estrangeiros. Então eu me considero apenas uma simples contadora de história e que sou aberta para todos os públicos, respeito todas as religiões, para que a minha seja respeitada, sou uma pessoa ecumênica. Estou aqui só de passagem, mas pretendo desfilar na vida.

Como foi essa trajetória da senhora até chegar a ser contadora de história?

Eu penso que minha trajetória é uma situação de família, porque eu venho de uma família que descende de negras que eram, por tradição da família de meu pai, mulheres empreendedoras, que é de uma história de que começa na escravidão, sem dúvidas, quando a gente começa a estudar negras de ganho. As negras de ganho a gente pode começar a entender quando se estuda Debret, que começa a falar do Rio de Janeiro do início do século 19, quando chega a família real portuguesa, que traz artistas, esses artistas começam a pintar o cotidiano da cidade. Então você vê metade do século 18 para início do século 19 muitas negras emancipadas, então com certeza a minha avó, as minhas tias avós, descendiam desse grupo de mulheres. Para resumir, minha avó verdadeira faleceu quando meu pai nasceu, porque hoje eu entendo que era por uma situação que tem na minha família que é pressão alta, ela teve uma eclampsia quando o meu pai nasceu naquele tempo e faleceu, ela sobreviveu ao primeiro filho, mas ao segundo ela não sobreviveu. E a que eu chamava avó, uma mulher de nome dona Maria Eduarda de Souza Botelho, a minha família de tradição é de Souza, o nome de um dos maiores traficantes de negros da história da escravidão, pelo menos aqui no Brasil. E quando meu pai nasceu, a minha avó morreu em seguida, dona Maria Cecília de Souza e Silva. Então dona Maria Eduarda Souza Botelho pega o menino que nasceu para criar, e juntamente com outro tio que eu tinha mais velho que meu pai, chamado Carlos Almeida de Souza e Silva. Essa minha tia avó tem quatro filhos e tem mais duas crianças, além do meu pai, agregadas. Ela tinha negócios. Ela alugava quartos para estudantes e era dona também de pensão, trabalhava com comida. E tinha uma pessoa para tomar conta só das crianças. Eu conheci uma dessas mulheres que contava histórias. Então um dia, eu indo passar o domingo na casa da minha avó, ela leva essa senhora, que era mais nova do que ela, para cuidar dos netos. Imagina, primeiro cuidar dos filhos dela e depois dos netos dela. Ela gostava de contar histórias. Então as primeiras histórias eu escuto da boca dessa pessoa para poder acalmar meus primos que eram muito danados. E aí mais tarde, baseado nisso, e minha mãe que também trabalha com comida, tinha pensão. E que eu já estou bem adulta, e minha mãe teve um casal de filhos, aí ela diz: ‘você toma conta dos meninos ou toma conta da pensão?’. Eu disse: ‘pelo amor de Deus, eu prefiro tomar conta dos meninos’. Aí eu trabalhava, tomava conta dos meninos e ainda estudava. E então, daí em diante eu fui tomando gosto por contar histórias, mas tive muitas reviravoltas na vida, e depois de muitos anos eu volto a contar histórias.

Ao contar essas histórias afro-brasileiras, a senhora compartilha conhecimentos que muitas crianças e até adultos nunca tiveram contato. Por que a senhora acha que é importante que essas pessoas tenham acesso a essas histórias?

Bem, primeiramente, meu público começa com meus irmãos pequenininhos, muito pequenininhos. E são histórias que eu conto, porque através do tempo, da vida, que eu fui entendendo a cultura negra através dessas pessoas que eu começo a ver, quando você é criança você ouve e guarda, mas depois que você está adulta, você vai identificar uma série de coisas. Então quando eu estou adulta, eu faço minha iniciação no candomblé, é que eu vou entender a cultura afro-brasileira, as histórias que eu conto hoje. Até então, eu contava histórias que eu ouvia em livros. Então eu vou me abdicar da cultura dominante, eu vou botar ela do lado e vou entrar na minha cultura, na cultura afro-brasileira. Mas a cultura afro-brasileira para você colocar para crianças é um pouco difícil. Porque você tem que escolher as tradições, porque os negros no Brasil. quando você fala afro-brasileiro, eles vem de três locais muito bem marcados, que é a cultura trazida pelos escravos da origem congo, a cultura iorubá e a cultura fon. Essas culturas elas vão estar especificadas em determinados locais do Brasil, porque não é Brasil, são ‘Brasis’. Então no Sul você vai ver a influência congo, e no Nordeste você vai ver a influência iorubá a influência mina no mais alto nordeste e um pouco da influência fon e mina muito pouquinha no Rio de Janeiro, mas para esses lados se vê mais é a cultura fon. Tem a cultura iorubá também, mas onde eu me especializei mais, onde eu mais estudei e procuro estudar é a cultura de origem iorubá, que deixou marcas aqui na Bahia, principalmente na forma de se falar, porque no Sul diz que o baiano fala cantando, sem saber porque o baiano fala cantando porque ele tem a influência de uma cultura que a língua é tonal, uma linguagem com quatro tons. Então a cultura aqui na Bahia é iorubá, a Bahia é um local onde tem maior quantidade de negros fora da África, eu dizendo isso já disse tudo. Fora da África. Não há lugar no mundo, pelo menos é falado e os lugares que eu passei, que tenha uma quantidade tão grande de negros. Eu falo não de cor preta, mas de raça negra, porque para mim preto é uma cor e negro é uma raça. E quando eu digo raça negra pode ter todos os tons de pele, todas as cores de olhos, todos os tipos de cabelo, a raça é uma só, a origem é uma só. Então me refiro a isso. 

E eu fui aprendendo que alguns grupos dos quais nós descendemos, suas histórias são baseadas em animais, então quando você conta a sua história baseada em animais para a criança de diversas religiões, é mais adaptável, mas quando você conta a história tradicional da cultura negra ligada ao culto dos orixás é complicado. Porque as pessoas discriminam muito, já discriminam normalmente a cultura negra, e principalmente quando se fala ligado a cultura de orixás, religiosa, é mais difícil ainda. Porém eu vou trabalhando dentro daquilo que eu posso. A minha história é para quem quiser escutar. Não é para um público específico, é pra quem quiser escutar e quem quiser conhecer. E assim é como eu digo. Vou andando pelo mundo por muitos caminhos, por muitos lugares. Entende? Que a passagem é curta. A história é infinita. A gente chega a perder até o tempo da história. Porque a história tradicional, a história vem de um povo que é passado para outro e para outro. E é uma história milenar. Alguns podem até dizer, essa história tem tantos anos antes de Cristo, mas quem pode garantir que tem tantos anos antes de Cristo? Mesmo que você tenha coisas, todo dia se descobre coisas novas, não é? Então é assim. Eu gosto de contar histórias, apenas.

Edição: Elen Carvalho