Bahia

ENTREVISTA

"Carnaval mesmo só tem quando tem carnaval de rua", afirma Paulo Miguez

Em entrevista, o professor e pesquisador fala sobre os aspectos culturais e econômicos do carnaval na Bahia

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
Miguez observa que o carnaval sempre foi uma arena de conflitos, de disputas entre espaço público e privado. - Divulgação

Em 2022, mais uma vez, não temos carnaval na Bahia por conta das medidas sanitárias necessárias para conter o avanço da pandemia de Covid-19. Ainda que seja uma medida justa, existe um impacto da ausência da festa tanto no aspecto econômico quanto cultural para todo o estado, e principalmente para a cidade de Salvador. O professor Paulo Miguez, pesquisador do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade e do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA), defende que, mesmo que aconteçam festas particulares durante estes dias, estas não podem ser consideradas carnaval, mas sim festas com espírito carnavalesco. Nesta entrevista a seguir, Miguez fala sobre a importância cultural e econômica do carnaval para a Bahia e, principalmente, Salvador; sobre a arena de disputas entre espaço público e privado; sobre este segundo ano sem carnaval.

Professor, pra começo de conversa, poderia nos falar um pouco sobre o papel cultural e econômico do carnaval na Bahia?

Paulo Miguez: O carnaval é, seguramente, uma das expressões simbólicas mais vivas, mais importantes da vida baiana. A essa dimensão simbólico-cultural veio juntar-se, a partir das duas últimas décadas do século passado, por conta da constituição de um mercado da festa, uma dimensão sócio-econômica que hoje tem uma relevância, uma importância imensa para a cidade de Salvador e para sua economia. Seja pela mobilização de recursos, tanto do mundo público quanto do mundo privado, para realização da festa, seja também pelo número de pessoas que têm na festa um momento, um espaço para produzir renda através das ocupações mais diversas, do ambulante, catador de lata, até trabalhadores que estão envolvidos em grandes negócios na festa, como os camarotes, os blocos, os trios elétricos, etc. Portanto, podemos dizer que um papel do carnaval na cidade hoje é, além do papel cultural, esse desde sempre e seguramente o mais importante, um papel sócio-econômico também que significa muito por conta da existência desse grande mercado da festa.

Este ano, mais uma vez, temos carnaval na rua. No entanto, já estão acontecendo várias festas particulares, os ensaios dos blocos, das bandas etc. Diante desse papel que o senhor já explicou, qual pode ser o impacto dessa “privatização”, ainda que temporária, do carnaval?

Isso produz um prejuízo simbólico da mais alta importância também. Nós precisamos do carnaval até para organizarmos melhor o nosso calendário, a nossa relação com o restante do ano. Você deve perceber na sua vida que as pessoas costumam dizer: antes e depois do carnaval. O carnaval é um balizador importante, é um momento esperado fortemente durante todo o ano por boa parte dessa cidade. A não realização durante o segundo ano consecutivo, traz grandes prejuízos. O fato de termos festas privadas sendo anunciadas, sendo realizadas agora no período do carnaval, não é exatamente uma novidade. A novidade é que elas serão realizadas não na expectativa do carnaval que virá, nem na combinação com o carnaval existindo na rua, mas na tentativa de substituir o carnaval, o que me parece impossível. Essas são festas com um espírito carnavalesco, mas não são o carnaval. O carnaval efetivamente é uma coisa que diz respeito à cidade, ao território da cidade. As festas privadas participam dessa dimensão festiva que o carnaval tem com a cidade, mas não expressam totalmente aquilo que faz do carnaval algo tão importante pra nós.

Carnaval é uma expressão simbólico-cultural que tem na rua, que tem no território da cidade seu lugar privilegiado.

E o senhor acredita que esse formato de carnaval de 2022 vai ter impacto nos próximos carnavais?

Veja, eu não me animo a dizer que estamos experimentando um novo formato de carnaval. Eu insisto em dizer que, desgraçadamente, não temos carnaval, e teremos apenas festas com espírito carnavalesco. Não imagino, não creio, não acho possível que doravante o carnaval passe a ser algo exclusivamente realizado em espaços privados, fechados, sejam eles espaços de elite, sejam eles espaços populares. Carnaval é uma expressão simbólico-cultural que tem na rua, que tem no território da cidade seu lugar privilegiado. Portanto, desse ponto de vista, se não tivermos um outro carnaval ou se tivermos o próximo carnaval, não tenha dúvida de que a presença privada estará, obviamente, ocupando espaço, mas carnaval mesmo só tem quando tem carnaval de rua.

Porque carnaval e cidade estabelecem uma relação que, qualquer tentativa de separar, produz efeitos nefastos para a cidade e para o carnaval.

Essa tensão entre carnaval de rua e festas privadas não é uma novidade na Bahia, principalmente em Salvador, não é mesmo? Qual o papel do poder público nesse processo de manter um espaço popular dentro do carnaval privatizado? 

Veja, o carnaval é uma arena de conflitos! Sempre foi assim, sempre houve disputas entre o espaço público e o espaço privado. Houve momentos em que a própria ocupação do espaço público estava interditada a determinado tipo de manifestações carnavalescas. Ou seja, sempre, ao longa da história, o carnaval foi um espaço de grandes conflitos, de grandes disputas, e continuará sendo. Não há possibilidade de pensarmos um carnaval sem essas disputas. E aí cabe, evidentemente, ao poder público um papel importantíssimo de regular esses conflitos. Regular sempre na perspectiva daquilo que é a essência e o espírito da festa, que é a sua presença no espaço público. Nesse momento, não podemos realizar carnaval por conta das condições sanitárias, por conta da pandemia, e não é possível mesmo, seria um ato absurdo imaginar a aglomeração que a festa causa — e ela é genial por que ela permite essa aglomeração. Acho que vamos mais uma vez enfrentar um ano sem carnaval, um carnaval em que praticamente só existirão as festas privadas. E caberá ao poder público, com um olhar cuidadoso sobre isso, inclusive para que não caíamos no risco de permitir as festas privadas, mas criminalizar as festas privadas que não sejam realizadas pelos setores de elite da cidade. Então, é preciso um olhar cuidadoso para saber como é que isso vai ser disciplinado, regulado. Mas, insisto, carnaval mesmo é carnaval de rua. Ainda que a ele estejam sempre associadas manifestações privadas. Mas se só houver manifestações privadas, eu me recuso a chamar isso de carnaval. Porque carnaval e cidade estabelecem uma relação que, qualquer tentativa de separar, produz efeitos nefastos para a cidade e para o carnaval.

Edição: Elen Carvalho