As fortes chuvas que atingiram o sul da Bahia e causaram tantos estragos são um evento metereológico incomum para a região. Embora as chuvas sejam comuns nessa época do ano, o volume de água deste ano foi muito maior do que o esperado. O professor do Instituto Federal da Bahia, Plínio Martins Falcão, doutor em Geografia e pesquisador dos impactos das mudanças climáticas, explica nesta entrevista a relação dessas chuvas com o agronegócio, desmatamento e aquecimento global.
Brasil de Fato Bahia: As chuvas intensas das últimas semanas que atingiram o estado são um evento isolado ou são consequência das mudanças climáticas?
Plínio Martins: O que o ocorreu no estado da Bahia agora não necessariamente se trata de um evento isolado, o que está em evidência aí é a atuação de uma área chamada, do ponto de vista metereológico e climático, de Zona de Convergência do Atlântico Sul. Essa Zona de Convergência é uma faixa de nuvens que se estende do sul da Amazônia até o oceano Atlântico. Esse ano, ela começou a se formar entre o último dia de outubro e os dois primeiros dias de novembro. Ela é um dos principais sistemas metereológicos que ocorre no Brasil e que é responsável pela reposição hídrica em grande parte do nosso país. Mas ela tem uma característica bem específica de contribuir com uma instabilidade atmosférica sobre o estado da Bahia. Ocorre que, nesse ano, ela se deu de uma forma muito mais intensa. E aí a gente busca saber se isso tem relação com as mudanças climáticas. Bom, embora a Zona de Convergência do Atlântico Sul seja uma correspondência metereológica que ocorre todos os anos, garantindo essa periodicidade chuvosa, nós podemos também fazer associações com o fato de que o desmatamento, o aumento das temperaturas têm intensificado cada vez mais a formação de vapor na alta atmosfera que vai dar a tônica às chuvas cada vez mais intensas. E, nesse caso, essas chuvas foram para além das médias estimadas historicamente para o sul da Bahia, trazendo esse impacto. Então, trata-se de um evento que ocorre, do ponto de vista metereológico, todos os anos, mas que, num atrelamento a um conjunto muito mais amplo de mudanças que vêm ocorrendo, podem impactar significativamente — e aí falando das mudanças climáticas — na periodicidade e na intensidade desses eventos.
Você pode explicar o que é isso que se tem chamado de mudanças climáticas?
Essa é uma pergunta muito corriqueira: o que são as mudanças climáticas. Primeiro, é importante salientar que nós não devemos ver as mudanças climáticas de forma negativa, como se elas fossem uma vilã. Porque as mudanças climáticas ocorrem de forma natural. Elas ocorreriam independente, por exemplo, da existência humana na Terra, fazem parte de um conjunto da dinâmica do sistema terrestre, da dinâmica da própria natureza, do próprio clima, que vai se modificando e vai se adaptando ao tempo e às novas realidades. No entanto, nós precisamos considerar que, no contexto dessas mudanças climáticas, encontram-se o efeito estufa, que também é natural, encontra-se o aquecimento, ou seja, a elevação das temperaturas, que também é um processo normal, mas que a atuação humana passa a interferir neste ciclo. Nos estudos de mudanças climáticas, um marco que é utilizado como referência importante para se tratar dessa questão é a Revolução Industrial. Porque, a partir dela, o homem começa a intensificar os modos de produção, a produção e circulação de bens, o avanço do uso dos combustíveis fósseis, uma intensificação de uso de poluentes, de elevação de temperaturas, influenciando tanto nesse efeito estufa natural, quanto nesse efeito estufa global.
O agronegócio e as queimadas de grandes extensões têm influência nesse cenário?
Com certeza absoluta, as queimadas de grandes extensões e o agronegócio têm influência direta sobre esse cenário que eu acabei de mencionar. Porque, ora, primeiro, nós precisamos entender que o planeta Terra, do ponto de vista natural, é capaz de se autorregular. Sua natureza, sua ecologia, seus fenômenos possuem uma autorregulação — é como o funcionamento do nosso corpo humano. Se esse funcionamento de autorregulação recebe interferências — e muitas vezes, interferências fortes —, é óbvio que esse ciclo muda. E aí há um cenário preocupante, porque o agronegócio lida diretamente com o monocultivo, com abertura de pastagens, então não ocorre, nesse caso, uma reposição natural dos processos, das espécies que vão compor o ciclo natural de regulação que o planeta e seus sistemas possuem. E o agronegócio vem junto não apenas com o desmatamento, mas também de uma série de outras atividades, como a intensificação de uso de maquinários, de uso de combustíveis fósseis, alteração da estrutura e das características naturais do solo. Tudo isso, de certa forma, vai contribuir com o desequilíbrio desse sistema Terra que nós temos.
Professor, esses eventos são passageiros ou vieram para ficar? O que a gente pode esperar para os próximos anos?
Nós temos evidências que parte dos eventos que estão associados a essas intensificações de mudanças do clima, elas vieram, digamos, não para ficar, mas elas vão ser cada vez mais comuns, caso o mundo não comece de fato a adotar com mais seriedade, com mais robustez políticas que minimizem os impactos diretos que negativamente sobre essas mudanças climáticas, sobre o aquecimento da temperatura da Terra. Então, nos próximos anos, a gente deve esperar que eventos como esse possam, sim, acontecer, podendo ser mais ou menos intensos, em extensões cada vez maiores, se tanto no âmbito mundial, quanto nacional, não se começar a adotar políticas e atender até ao que já existe na própria legislação acerca de cuidados com os sistemas naturais, com a natureza, com a redução de atividades que sejam agressivas ao clima, agressivas ao solo, agressivas aos recursos hídricos.
Ainda é possível reverter esse cenário? Como?
Estamos muito próximos, sobretudo aqui no Brasil — no que concerne, por exemplo, a região amazônica e seu desmatamento — daquilo que é o limite para essa reversão. E isso é muito preocupante, porque temos visto que as políticas e atuação sobre essa pauta no Brasil têm sido vivido um retrocesso muito grande. Primeiramente, um impacto muito forte na ciência que estuda, que projeta, que prevê esses acontecimentos, essas ocorrências. E seguidamente, pela desarticulação e desregulação nas políticas que teriam a obrigação de promover os cuidados necessários para que esses eventos ocorram com gravidade. Então, nós podemos frear, e a partir desse freio a gente vai conseguir prever o que poderá ser feito.
A gente percebeu nessas chuvas fortes na Bahia que as consequências mais graves foram nas áreas urbanas. As áreas rurais sofreram também, claro, com perda de produção, dificuldade de transitar pelas estradas de terra, mas sem desabamentos e inundações, por exemplo. A maneira como os nossos centros urbanos são construídos também influencia nesse resultado trágico?
Com certeza. A maneira como os centros urbanos são construídos pode influenciar nesse resultado muitas vezes. Mas é importante a gente salientar que essa tendência de cidades estarem próximas de cursos d’água no mundo inteiro. A história das cidades nos mostra, desde, por exemplo, a Mesopotâmia, o antigo Egito, as cidades sempre se formaram em proximidade com rios ou com o mar, porque água é fonte de vida, é agricultura, transporte, meio de locomoção. A grande questão é que hoje, no século XXI, nós temos diferentes níveis de ocupação, e muitas vezes essas ocupações são feitas de forma inconsistente com a realidade de um curso fluvial, de um rio. Ou seja, um rio possui a sua planície de inundação, e todos nós sabemos que, em período de chuvas mais intensas, aquele rio vai encher mais. As planícies de inundação, as margens desses rios precisam ser preservadas em suas condições naturais e, tecnicamente, não deveriam ser ocupadas. Mas como a gente tem uma resposta para isso, se em muitas cidades, inclusive cidades pequenas, praticamente se organizaram em torno do rio, com ocupações diversas? Então, cabe à atuação do planejamento urbano, das políticas públicas buscar sanar. Esse não é um problema novo, é um problema muito antigo aqui no Brasil, e que acaba colocando populações em situação muito vulnerável. E essa vulnerabilidade obviamente se apresenta em situações como essas que aconteceu agora no sul da Bahia.
É possível nos preparar de alguma forma para eventos como esses e minimizar seus impactos?
Sim, é possível uma preparação para eventos como esse. Ela precisa ter como base um planejamento urbano muito fundamentado no processo de ocupação de áreas de risco. Em todas as cidades, as áreas de risco precisam ser mapeadas, precisam obedecer aos estudos de vulnerabilidade, precisam criar sistemas e ferramentas de alerta para acompanhar os sistemas de monitoramento, tudo isso já existe, na verdade, precisa ser colocado em prática. É o melhor caminho, para os níveis que nós já atingimos no porte das nossas cidades para tentar minimizar impactos em cenários como este, porque se nós não tomarmos as medidas minimamente necessárias, nós vamos ter cenários impactantes cada vez maiores. É entender que precisamos reduzir esse desmatamento, precisamos preservar as margens dos rios com a sua vegetação nativa, ou seja, a vegetação tem um papel importantíssimo no que nós chamamos de interceptação de água das chuvas, e por sua vez contribuir com a dinâmica, com o fortalecimento das margens, evitando níveis cada vez mais casos intensos de inundação. É uma série de questões que estão relacionadas tanto à situação climática quanto à situação hidrológica propriamente dita. E é óbvio que os efeitos metereológicos vão ocorrer. Mas, se nós temos planejamento adequado, o uso correto das ferramentas e das políticas públicas para acesso a monitorar e assessorar as áreas de risco diversas, pode ter certeza que vamos ter resultados menos danosos. Mas, voltando para o início, é muito necessário que haja um compromisso dos governantes do país, dos estados com as pautas voltadas para a agenda das mudanças climáticas.
Edição: Elen Carvalho