Bahia

LITERATURA NEGRA

"A literatura dialoga com todas as instâncias da vida, com todos os poderes", afirma Jovina

A poeta baiana Jovina Souza fala sobre a literatura negra e a sua importância na entrevista desta semana

Brasil de Fato | Lençóis (BA) |
O primeiro livro da poeta foi Agdà, lançado em 2012. - Divulgação

Nós entrevistamos a poeta baiana Jovina Souza, nascida em Feira de Santana, residente em Salvador, graduada em Letras Vernáculas e mestre em Teoria e Crítica Literária pela UFBA. Mais do que isso, Jovina é ativista e educadora com uma longa trajetória na construção de projetos de identidade voltados para o cuidado da autoestima de negras e negros de todas as idades. De palavras afiadas e pensamento crítico, ela conversa conosco sobre literatura negra, resistência e poesia.

Jovina, a senhora começou a publicar seus poemas digamos, "tardiamente", não é mesmo? O que te motivou a tirar os textos da gaveta e colocar em livros?

Jovina: Eu, na verdade, sou uma leitora antiga, não uma escritora antiga. Eu escrevo há pouco tempo. Eu decidi mesmo começar a escrever a partir de 2014, foi quando eu vi que o texto preto procurava um leitor ansioso em se ver representado nos textos da literatura brasileira. Uma criança, um jovem negro muito angustiado por se deparar com representações negativas sobre ele, sobre seus antepassados, sobre sua história, sobre sua cultura. Eu percebi que esse texto que eu escrevo conseguia dialogar muito intimamente com as necessidades dessas crianças e desses jovens negros. A partir de experiências com eles e de feedbacks, eu resolvi escrever mesmo, assumir essa função, essa tarefa a partir de 2014. Essa decisão aconteceu após a publicação do meu primeiro livro, em 2012. Mas eu publiquei em 2012 porque eu pretendia fazer concurso para a Uneb, e uma amiga me advertiu que eu não era professora de rede oficial e que essa falta iria me prejudicar na contagem dos pontos, mas que quem tinha livro publicado conseguia melhorar essa posição. Aí eu pensei, e escrevi um livro com esse propósito, que é meu livro um, chamado Agdà, publicado em 2012. Depois eu resolvi não fazer o concurso e também não aventei naquela época a possibilidade de continuar escrevendo. Isso só ocorreu depois que eu tive essas experiências com esses jovens e essas crianças negras.

Na última década, a gente tem visto o surgimento de editoras especializadas em literatura de autoras e autores negras e negros, editais específicos etc. Qual a importância do surgimento dessas editoras para a literatura negra? 

O surgimento dessas editoras especializadas, ou que se dizem especializadas em publicar textos negros, é uma temática que requer uma discussão mais aprofundada no que diz respeito a relacionar esse fato com melhoria e abertura para outras vozes. Acho que não houve uma abertura para outras vozes. O que há é um movimento para que essas vozes tenham lugar de fala. Mas considerando alguns aspectos, como por exemplo, a luta por esses lugares, a luta por reconhecimento de que negros são capazes de escrever textos literários, e que foi uma luta muito grande dos pretos, uma luta de muitos séculos. E quando nós conseguimos segurar esse propósito, conseguimos botar nossos textos na rua, nas escolas, então, essas pessoas, esses investidores criaram suas empresas para se aproveitar de um mercado construído a sangue e areia e muito esforço, muita renúncia e muita dedicação. O que eu diria que ajudou bastante foi a implementação da lei 10.639, porque ela abriu espaço para que aquele professor aberto a outras vozes utilize o texto negro em sala de aula. Isso criou uma motivação a mais para nós escritores negros, porque a gente já podia então chegar numa escola e dizer: “Olhe eu tenho aqui um texto que está de acordo com a lei federal da aplicação 10639, gostaria de deixar aqui e tal”.

Professora, a senhora acha que é possível a gente falar em uma "literatura negra" no Brasil? 

Essa questão da literatura ser negra ou não está mais sujeito ao jogo de forças que está em disputa. Isso é um assunto muito comprido, um assunto para ser discutido com muita calma. Há muitas implicações, há um jogo de forças para descaracterizar a literatura negra e defini-la do jeito que interessa ao racismo. Por isso que esse é um assunto que toma muitos pontos importantes sobre artes, sobre poder, literatura… Mas eu defino a literatura negra como uma literatura feita por pretos que têm experiências com racismo e que têm negado o acesso a sua história, a sua memória, a sua cultura e a sua ancestralidade. Então, o texto negro ele faz a representação positiva da cor preta, mas ele também traz a sua memória, a sua história negada, as relações de afeto, as nossas visões de mundo, os nossos sentimentos, as nossas vivências dentro de um sistema racista-extermínio, o mais cruel do planeta, que nós negros enfrentamos desde a hora que nascemos até a hora que morremos. Todas as imposições de violências várias que a literatura e a cultura brasileira nos impõem são conteúdo da literatura negra. Outros sujeitos podem escrever e dizer que estão fazendo literatura negra, porque literatura é linguagem. Então, qualquer um pode fazer. Por isso há discussões hoje, quando a literatura negra alcança um lugar, não de sucesso, mas de aceitação. Ela conquista um leitor, ela se constitui já com um sistema literário, porque nós temos escritores, nós temos pesquisadores, nós temos crítica, nós temos editoras e nós temos leitores, então nós temos todos os itens de um sistema literário. O que tem também colaborado para que a literatura negra hoje tenha essa visibilidade.

Como a gente pode caracterizar a literatura negra?

A literatura do povo negro, chamada literatura negra, não é nova, acompanha toda a literatura brasileira, é um movimento da literatura brasileira. Um movimento que começa logo após a Independência do Brasil, quando nós podemos falar de uma literatura nacional. Ela começa com Machado, passa por Luiz Gama, Cruz e Souza, Maria Firmina, primeira romancista brasileira, uma mulher negra, e Lima Barreto também. Então tem um histórico longo, que perpassa todos os movimentos da literatura brasileira, essa literatura chamada literatura negra. Só que, pela estrutura do racismo, mesmo esses escritores, só estão no cânone Machado, Cruz e Souza e Lima Barreto. Mas eles não eram valorizados nem eram estudados nesse aspecto de ser um texto negro, eles eram embranquecidos. Porque era muito difícil para a crítica racista brasileira ignorar os textos de Machado, principalmente quando ele começou a ser festejado e ter seu valor reconhecido pela crítica internacional. Então eles começaram a embranquecer Machado e, ao mesmo tempo, negar que ele fosse negro e que ele tivesse um compromisso com outra representação do povo preto. Uma representação que ia — que vai — de encontro aos textos da literatura brasileira.

Qual a importância dela pra literatura brasileira?

A importância dela é de suplementar as páginas da literatura brasileira. Tudo que a literatura brasileira dispensou e rebaixa, a literatura negra toma como primoroso e mostra o valor do povo negro, sua história, sua cultura, seu percurso, seus feitos. É preencher essa lacuna, porque toda a literatura nacional para merecer esse nome tem que representar todos os componentes da nação. Falar da sua história, da sua cultura, da sua visão de mundo, como cada um contribuiu para a construção do nacional. E a literatura brasileira fica de um certo modo num estado risível, porque ela se diz literatura brasileira, mas só representa os brancos, só fala dos brancos, das suas trajetórias, das suas visões de mundo, dos seus sentimentos, das suas relações, dos seus afetos e das suas contribuições. Essa lacuna foi imposta pelo racismo dos escritores brasileiros e da crítica brasileira à literatura brasileira. A gente tem uma literatura brasileira capenga, uma literatura nacional que não é nacional, ela é uma literatura de brancos, feita para brancos, para endeusar os brancos e desfazer dos outros, dos povos pretos e indígenas. Enão, essa é a importância que a literatura do povo negro tem. Para nós negros é uma literatura que nos representa de forma digna e ao mesmo tempo presta um grande serviço à literatura brasileira para que ela deixe de ser um panfleto racista

A literatura tem (ou deve ter) uma função social? Se sim, qual seria?

Sim, ela tem uma função. A literatura é um texto muito perigoso, é um texto político, é um texto ideológico, é um texto cultural, é um texto que dialoga com todas as instâncias da vida, com todos os poderes. É um texto que está nas escolas desde o jardim até o pós-doutorado, não à toa. Isso significa que ele é um texto que faz parte da formação intelectual, imagética da sociedade. É lógico que a literatura tem função social, e é função social importante, porque ela está nas ementas de todos os níveis escolares. Esse é um dos motivos que nos leva a dizer que, com certeza, a literatura tem uma função cognitiva muito importante. Não é só de fruição, estética, não é só de beleza, não é só de uma forma bem feita. Ela se passa como um texto lúdico (e é) e por isso é perigosa, porque ela trabalha com a linguagem e a linguagem é representação, representar é prescrever. Ela é esse porta-voz que alimenta e se alimenta da cultura. Então, a depender de qual cultura ela está se alimentando, ela vai ser mais ou menos utilizada, mais ou menos perigosa. A literatura emerge da sociedade, emerge da cultura, dos valores que orientam os corações e os raciocínios, as estruturas sociais.
 

Edição: Elen Carvalho