Neste mês de outubro, o governo federal anunciou a criação de um novo programa de transferência de renda, o Auxílio Brasil, e, com isso, a extinção do Bolsa Família. Criado em 2004, ele foi responsável por cerca de 10% da redução da desigualdade social no Brasil durante sua vigência. Para comentar os impactos dessa mudança e o cenário de incertezas que o cerca, entrevistamos Roberto Marinho da Costa, assistente social, doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e atual secretário de Assistência Social do município de Barreiros (PE).
Brasil de Fato Bahia: Há várias pesquisas e dados que mostram que a desigualdade social diminuiu no país durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Você poderia comentar sobre a relação entre essa diminuição da desigualdade e a criação dos programas de transferência de renda, principalmente o Bolsa Família?
Roberto: O programa Bolsa Família responde por um importante mecanismo de proteção social estatal no Brasil, que foi, sem sombra de dúvidas, um divisor de água na garantia do Estado brasileiro de benefícios de transferência de renda para população mais vulnerável. Podemos dizer que o Bolsa Família responde por 10% da redução da desigualdade social no Brasil, entre os anos de 2001 e 2015. Esse impacto, sem sombra de dúvidas, é relevante, tendo em vista o baixo custo que o programa ocupou dentro do orçamento geral da União, representando apenas 0,5% do PIB. Tem também uma particularidade do Bolsa Família que ele é um programa que a gente chama de virtuoso, porque a cada R$1 que o Governo Federal executa em benefício de transferência de renda, uma média de 1,5 reais retorna para os caixas da União. Além de gerar uma garantia de renda, de segurança alimentar, de sobrevivência à classe trabalhadora brasileira, ainda se consegue fazer com que a economia gire. Tem-se um mecanismo de desenvolvimento social, mas também se consegue alçar o desenvolvimento econômico.
Estamos testemunhando o fim do Bolsa Família este mês, programa de transferência de renda, que, como você já falou, teve um impacto importante na diminuição da desigualdade no país. Qual o legado que o Bolsa Família deixa para o Brasil?
É importante destacar que o programa Bolsa Família foi a primeira experiência latino-americana de transferência de renda que levou em consideração, além da transferência da garantia pecuniária à população, condicionalidades. Então, disponibiliza-se à população uma garantia de transferência de renda, mas junto a isso se promove também a educação e a saúde como condicionalidades, garantindo um acompanhamento sistemático dessas famílias. Há algumas contradições que acompanharam o Bolsa Família em sua desenvoltura ao longo dos governos do PT, mas sem sombra de dúvidas, é um programa que deixa muitos legados. Não é à toa que em 2019 nós chegamos à marca de 14,2 milhões de famílias atendidas. Isso significa uma população de quase 80 milhões de pessoas. A gente está falando aí de um percentual significativo da nossa população que é assistida por esse programa. Vou citar um exemplo: eu sou gestor de um município de pequeno porte em Pernambuco, onde 52% da população está em condição de extrema pobreza e 61% da população recebe o Bolsa Família. Isso representa na economia local algo em torno de R$2 milhões por mês. Essa população consome nos mercados locais, no comércio local, promovendo assim um desenvolvimento da economia local.
E um outro legado que eu acredito que merece um destaque importante é que o Bolsa Família acabou construindo uma cultura institucional. Como o próprio presidente Lula faz questão de mencionar em quase todas as suas entrevistas, pela primeira vez o pobre se sentiu representado no Orçamento Geral da União. Houve um crescimento importante do financiamento da política de assistência social durante os anos dos governos do PT, houve uma cultura de aproximação do Estado com a população mais vulnerável. E o Bolsa Família coroa esse processo de envolvimento, de desenvoltura, de uma proteção social estatal, com um olhar para os mais pauperizados, para a classe trabalhadora que está mais à margem da sociedade.
Quais são as informações seguras até agora sobre o Auxílio Brasil e o que ainda é incerto?
O (des)governo Bolsonaro parece que construiu um grande plano de gestão que é mudar os nomes dos programas criados pelos governos do PT. Eu acho que o Auxílio Brasil representa mais um desses programas com uma nova roupagem, mas que não apresenta avanços em relação ao programa que anteriormente estava posto. Eu acredito que o Auxílio Brasil em breve será matéria de julgamento pelo Poder Judiciário. Porque nós temos o teto de gastos públicos, a Emenda Constitucional 95 instituiu essa medida de austeridade fiscal para controlar o gasto estatal. Além disso, nós temos um problema que é, com a medida provisória que cria o Auxílio Brasil, foi revogada a lei de 2004 que criou o Bolsa Família. Logo, a partir do dia 10 de novembro, quando passa a valer essa MP, o governo federal não mais contará com a base legal para transferir o dinheiro por meio do Bolsa Família. Então, o governo está se mobilizando em diversos campos, inclusive nessa semana entrou em pauta na Câmara [Federal] a votação da medida provisória dos precatórios, que é uma das estratégias que o governo Bolsonaro construiu para tentar gerar orçamento para o financiamento do Auxílio Brasil. Isso tem construído um processo de muita insegurança. Vale salientar que, na condição de gestor público municipal, nós estamos sem nenhuma informação. Os coordenadores estaduais e municipais do Cadastro Único e os gestores municipais e estaduais estão sem informações para conduzir o programa Bolsa Família ao Auxílio Brasil. Nós estamos numa grande lacuna de incertezas. Sabemos que o Auxílio Brasil vigorará no mês de novembro, a promessa é que haja um incremento médio de 20% nos auxílios pagos, que poderão chegar a R$400, mas não existe nenhuma regra de transição. Quem hoje faz parte da base de dados do programa Bolsa Família provavelmente passará a fazer parte da base de dados do Auxílio Brasil, mas quem da fila de espera existente — que está inscrito, que tem perfil para o Bolsa Família — irá passar para a condição de beneficiário, nós não sabemos. Não sabemos, inclusive, se nesse processo haverá mudança de alguns critérios que podem retirar alguns usuários do Bolsa Família. O momento é de incerteza, de insegurança jurídica e muita cautela, para que a população não tenha perdas em sua condição de vida e nessa proteção social estatal que é uma conquista feita a muitas mãos com muita participação da classe trabalhadora. Para sintetizar: as informações são precárias ainda, elas estão passando pela análise da equipe econômica do Governo Federal que está esfacelada e nós, gestores, militantes e operadores da política de assistência social estamos no aguardo de informações mais precisas. Não diria que é uma situação para gerar pânico, mas é uma situação para gerar cuidado, cautela e organização. Diante de retrocessos que eventualmente essa mudança venha a gerar, que tenhamos força para lutar e para conquistar direitos de forma mais ampla e inclusiva.
E quem ficar de fora, pode recorrer a alguma instituição ou órgão governamental para rever essa situação?
Na organização de gestão do programa Bolsa Família, a instituição municipal que atende a população de forma mais próxima, que pode fornecer informações mais precisas, mais exatas — na medida em que essas informações chegam — é a equipe do Cadastro Único. Eventualmente, a população conhece o Cadastro Único como o próprio Bolsa Família, embora lá se operem outras políticas para além da transferência de renda promovida pelo Bolsa Família. Então, eu recomendo que, havendo alguma divergência, alguma perda, algum problema relacionado à manutenção do benefício nessa virada do Bolsa Família para o Auxílio Brasil, recomendo que o cidadão procure o posto do CRAS ou Cadastro Único mais próximo de sua casa e procure saber qual critério foi utilizado para que esse benefício fosse suspenso ou cortado, para que não haja retrocesso nesse processo transicional.
O Auxílio Brasil vem recebendo críticas por parte do mercado financeiro devido ao seu financiamento. Na sua opinião, qual seria a melhor maneira de fazer esse financiamento?
Existe uma problemática que é histórica no Brasil que a regressividade da tributação. Na carga tributária há um ônus maior para a população que tem menor margem financeira. A população mais pobre acaba pagando proporcionalmente mais impostos. Isso é um problema sistemático, que não é só do Auxílio Brasil. Mas o Auxílio Brasil veio num momento muito inoportuno: não se cria uma nova fonte de despesa financeira no final de um ciclo orçamentário. Nós estamos terminando um PPA (Plano Plurianual), e a partir de 2022 haverá um novo PPA que será vigente para os próximos quatro anos. A Lei de Diretrizes Orçamentárias e a LOA de 2021 não foram feitas prevendo uma mudança nesse programa de transferência de renda, de modo que hoje o orçamento do Auxílio Brasil tem um grande teto de vidro. Ele não tem previsão legal, não tem orçamento disponível e, pior, ele não tem hoje uma previsão financeira. Então, há um esforço muito grande para uma recuperação política da popularidade do governo federal, e, para isso, estão pulando várias esferas do debate de uma política de transferência de renda para tentar construir uma maior popularização do governo. Um governo que, durante todo o tempo que ficou no poder, se concentrou em gerar mais desigualdades, mais pobreza, mais precarização do trabalho, contribuindo com avanço da desigualdade social. Enquanto classe trabalhadora, base de poder popular, como nós poderíamos construir uma política de transferência de renda mais robusta e com financiamento garantido? Sem sombra de dúvidas, precisaríamos transformar o nosso sistema tributário. Fazê-lo de um sistema regressivo, um sistema progressivo, em que as classes que detêm um maior poder financeiro e remuneratório possam pagar um pouco mais de impostos. E esse imposto ser revertido para essa transferência de renda. Há diversas soluções: podemos também promover remanejamento. Estamos num cenário que, mesmo com esse nível de desigualdade e pobreza, esse aumento da precificação de itens básicos da cesta básica, aumento histórico da inflação, temos um Orçamento Geral da União que chega a dedicar 51% de sua totalidade a pagamentos de juros da dívida. Isso é absurdo! Nós precisamos tratar o OGU a partir dos interesses da população e não do capital financeiro, não do capital portador de juros. Então, existem diversas medidas que precisam ser debatidas nesse cenário de financiamento de programas de transferência de renda, das políticas sociais de forma mais ampla, mas, sem sombra de dúvidas, uma progressividade tributária seria um cenário interessante para o debate. E junto a isso uma auditoria cidadã da dívida, para que a gente pudesse ter um OGU disponível para a população brasileira, para o povo.
Edição: Elen Carvalho