Bahia

ENERGIA

Saiba quais são os reais fatores para os aumentos na conta de energia

Para falar sobre o assunto, entrevistamos Gabriele Sodré, da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)

Brasil de Fato | Lençóis (BA) |
"É importante entender que não se trata apenas de uma taxa conjuntural, não é de hoje que o povo brasileiro paga um preço abusivo na conta de luz", afirma a militante. - Arquivo pessoal

As tarifas de energia elétrica sofreram diversos aumentos este ano. O governo federal insiste no discurso de que os aumentos se devem a uma crise hídrica, que a culpa seria de secas inesperadas para o ano de 2021 e que o setor não teria alternativa, senão aumentar o preço para a população. No entanto, movimentos sociais e especialistas apontam um outro conjunto de fatores para os preços abusivos das contas de luz. O Brasil de Fato Bahia entrevistou Gabrielle Sodré, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos e Atingidas por Barragens (MAB) para entender quais são os reais fatores desses aumentos.

O MAB aponta que o volume de água que entrou nas hidrelétricas em 2020 foi um dos melhores da última década. O governo, por outro lado, afirma que o aumento da conta de luz se deve a uma crise hídrica muito forte, a pior dos últimos 90 anos. O que realmente está fazendo a conta de luz chegar cada dia mais cara nas nossas casas?
É importante entender que não se trata apenas de uma taxa conjuntural, não é de hoje que o povo brasileiro paga um preço abusivo na conta de luz, mesmo antes do atual período de seca da região sudeste, já pagávamos a segunda tarifa mais cara do mundo, ficamos atrás apenas da Alemanha segundo a Agência Internacional de Energia. Há seca, mas segundo dados da ONS, entre os últimos 20 anos, 2020 foi o 5º melhor ano com volume de água nos reservatórios. Além disso, o Brasil produz uma das energias mais baratas do mundo, então também não é uma problema de matriz, mas sim de modelo. O atual modelo energético brasileiro visa o lucro dos acionistas, é o empresário que dita as regras do jogo, então por mais que todas as condições sejam as mais favoráveis para que o povo pague um preço justo, continuaremos pagando preços abusivos se o modelo permanecer o mesmo.

Caso o regime de chuvas se altere ainda neste verão (se tivermos um verão mais chuvoso, no caso), há a possibilidade de melhora imediata no valor das tarifas?
Há duas questões aqui. Primeiro que há uma possibilidade, ou melhor, uma promessa por parte do então presidente Bolsonaro, de redução da bandeira tarifária caso o volume de chuvas da região sudeste aumente; logo em seguida o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, já o contrariou e disse pra imprensa que manterá a bandeira mais cara na conta de luz pelo menos até abril do ano que vem. Então veja, não há consenso nem mesmo dentro do próprio governo. 
Mas a questão é que a gente não precisaria desse aumento do volume de chuvas para ter redução da tarifa, porque não é a seca que a tem  tornado tão cara. Nós temos no Brasil algo de mais avançado em termos de distribuição de energia que é o SIN, o Sistema Interligado Nacional, ele proporciona a transferência de energia entre os subsistemas de cada uma das regiões em que está instalado, que são Sul, Sudeste/Centro-Oeste, Nordeste e a maior parte fica da região Norte, o que quer dizer que mesmo tendo seca na região sudeste, se há volume de chuvas com condições de encher os reservatórios e gerar energia lá no norte do país, então a gente tem energia para abastecer a indústria e a casa dos consumidores em qualquer lugar do Brasil.

Ainda sobre o impacto das secas e chuvas nesse contexto: a política ambiental e o alto índice de desmatamentos também influencia?
Sim, não há como negar que a destruição da natureza, dos nossos recursos naturais, florestas, bacias hidrográficas impactam diretamente nas condições climáticas. No governo Bolsonaro essa também é uma questão problemática. Hoje a gente vive um recorde nos níveis de desmatamento na Amazônia, no ano passado foram mais de 74 mil alertas de desmatamento em todo o território nacional. A gente tá vivendo nesse momento aqui no estado da Bahia várias ofensivas do agronegócio nesse sentido. Acredito que muita gente está acompanhando o processo de tentativa de liberação do desmatamento de mais de 1000 hectares de vegetação na cabeceira do Rio Paraguaçu, na Chapada Diamantina, tem também o desmatamento no Oeste do estado, tudo isso vai enfraquecendo os cursos d’água.


O governo Bolsonaro, para justificar a privatização da Eletrobras, afirmou que haveria uma diminuição na tarifa na casa dos 7%. Mas o que a gente vê agora são aumentos que chegam a ultrapassar os 50% na bandeira vermelha, por exemplo. Qual o impacto da privatização da Eletrobras nesta crise energética?
Com a privatização da Eletrobras o principal impacto na vida do povo é de fato o tarifaço na conta de luz, além é claro da falta de investimento nesse setor, o que representa um sucateamento do setor elétrico brasileiro. No ano passado, o Amapá passou exatamente pelo que significa um processo de privatização, teve o apagão no início do ano em plena pandemia, aqui na Bahia também tivemos pequenos apagões na capital, em Salvador, no Rio de Janeiro também. Hoje a Eletrobras está dividida em cerca de 60% na mão do governo e 40% na mão da iniciativa privada, uma vez privatizada, o povo perde esse controle, o que é um ataque direto à nossa soberania nacional, já que o verdadeiro dono da Eletrobras, de suas 125 usinas e 335 subestações, é o povo, que deixaria de ter influência em qualquer decisão na política de preços da empresa, nos investimentos que ela gera em saúde, educação, etc. A Eletrobras arrecada cerca de 19 bilhões para a união, com a privatização, quer dizer que são 19 bilhões a menos entrando nos cofres públicos. São 19 bilhões a menos em investimento em políticas sociais.

Sabemos que essa conta está sendo paga pelo povo que trabalha. Mas há realmente tão grande impacto de um suposto aumento do consumo residencial para essa crise energética?
Pelo contrário, é de conhecimento geral que o maior consumidor de energia elétrica no Brasil é a indústria, não é o trabalhador que tem um ar condicionado em casa ou uma geladeira que justifica um possível aumento na tarifa residencial. O consumo doméstico não representa demanda o suficiente para impactar a geração de energia no país. Reunidos, os demais setores consomem cerca de 80 a 90% de toda a energia gerada, são esse inclusive os tal dos consumidores livres que podem escolher no mercado de energia com quem comprar, diferente dos consumidores cativos, o povo, que não tem essa escolha. Outra questão é que o consumo de energia diminuiu. No ano de 2020, 47.303MW foram gerados, disso, 4.241MV sobraram, o suficiente para abastecer 18 mil famílias ao longo de 12 meses. Esses 4 mil representam a quantidade de água que foi jogada fora dos reservatórios. É basicamente a farsa da crise hídrica em números.

Investir em termelétricas, como o governo federal tem feito, é uma boa solução mais imediata?
O acionamento das térmicas, em momentos específicos pode sim ajudar a manter o sistema oferecendo energia, porém esse acionamento deveria ter sido feito no ano passado, quando os lagos já estavam secando. Há um erro grave de gestão do governo na demora em ligar as térmicas.
Mas novamente, não é uma questão de matriz. A matriz energética brasileira, que é majoritariamente composta de hidrelétricas, gera energia suficiente para o consumo do país, tanto gera que ainda sobra. A energia gerada pelas termelétricas, é inclusive mais cara. O interesse das empresas não é de gerar uma energia mais limpa, ou mais sustentável, mais barata, que gere autonomia pro consumidor doméstico, nada disso, o interesse é de gerar não o lucro, mas o super lucro, porque como eu disse, a Eletrobras arrecada bilhões pros cofres públicos, ela é uma empresa lucrativa, que tem sua estrutura construída toda amortizada, o que quer dizer que ela está completamente paga, ela só gera lucro, e ainda assim, querem privatizá-la, esvaziam seus lagos propositalmente, aumentam as tarifas de energia, criam novas bandeiras, pra que o povo, que já está vivendo uma crise econômica intensa de aumento da precarização da vida, arque com estes custos. 

Quais seriam os caminhos, a curto e longo prazo, para solucionar o problema sem que o povo seja obrigado a pagar essa conta?
Pro curto prazo existem algumas medidas possíveis como a taxação dos grandes consumidores e barateando para as residências. Colocar em prática o projeto de Lei 14.203, de 2021,  que obriga as concessionárias de energia elétrica a incluírem automaticamente famílias de baixa renda no Programa Tarifa Social. Além disso, nossa ação imediata precisa ser a derrubada do governo Bolsonaro. A política de destruição das nossas riquezas, da nossa soberania, está sendo implementada, a boiada está passando. É através da tentativa de privatização da Eletrobras, da Petrobras, dos Correios, das empresas de saneamento e tratamento de água e esgoto que o governo Bolsonaro tem conseguido precarizar a níveis sub-humanos a vida do nosso povo. Se o trabalhador não tem conseguido nem colocar comida na mesa, ou pagar um transporte para ir trabalhar, como é que ele vai pagar a conta de luz? Conta essa que vem cada vez mais cara. 
No longo prazo precisamos construir um projeto energético que seja popular, que coloque o povo como sujeito e protagonista do processo, com uma mudança do modelo energético da energia como mercadoria, para um modelo em que a energia seja enxergada como uma necessidade humana para o desenvolvimento pleno do indivíduo.

O Brasil tem investido na produção de pesquisas no setor energético ou outras áreas que nos levem a encontrar soluções para a crise do setor?
Hoje o preço da energia do Brasil é baseada no barril de petróleo, que tem um altíssimo custo de produção, porém no Brasil o custo de produção em hidrelétricas é muito barato, em torno de R$ 15,00 MW. Ou seja, é importante fazer as pesquisas e buscar energias mais sustentáveis para o meio ambiente que garantam o direito das populações atingidas. Mas isso só será possível com a mudança do modelo privado para um modelo energético popular. Existem uma série de iniciativas, pesquisas para melhoria da produção hídrica, como ampliar a produção da energia solar, etc, infelizmente não por parte do governo atual. Algo que a gente precisa entender bem é que o problema não é a tecnologia implementada. De novo, é o modelo. A energia precisa ser entendida enquanto um bem social, enquanto isso não estiver estabelecido, não adianta mudar a matriz ou adotar uma nova tecnologia, o preço continuará caro, porque o objetivo final continuaria sendo a lucratividade das empresas.
 

Edição: Elen Carvalho