uma desestruturação da pós-graduação terá um efeito de longo prazo, demorado de reverter.
A Educação Superior no Brasil é um fenômeno tardio, posterior à consolidação de estruturas universitárias na Europa, Estados Unidos e inclusive na América Latina. Uma obra basilar para compreender essa história é o livro “A Universidade Temporã” de Luiz Antônio Cunha, da Editora da UNESP. Esse atraso refletiu a constituição da Sociedade brasileira, com uma colonização de exploração predatória escravista, de produção de monoculturas ou exploração de metais para envio à metrópole, e posteriormente pelo período do Império (1822 a 1889) que em nada mudou a estrutura social profundamente desigual e excludente contra a maior parte da população brasileira.
O Estado, nesse período, refletia e reproduzia esse processo de concentração de renda e poder e a Educação de forma geral, inclusive a superior, não era acessível para a ampla maioria da população. Cursos Superiores eram proibidos no território da Colônia e a Educação Básica era um monopólio dos jesuítas, com uma função de aculturação e subjugamento dos índios e negros e formação de uma diminuta elite dominante da sociedade escravocrata da época. Mesmo quando o Marquês de Pombal proibiu a Companhia de Jesus de atuar em território brasileiro, nenhum sistema educacional foi instituído. Essa situação da mesma maneira perdurou durante todo o Império, que apesar de enunciar na Constituição de 1824 uma Educação Básica a cargo das províncias, não garantiu destinação de recursos para a construção de nada nesse sentido.
Essa foi a razão pela qual Rui Barbosa em seus estudos sobre o analfabetismo no Brasil identificava que mais de 90% da população brasileira era de analfabetos no início da República. Esse número só viria a cair muito lentamente ao longo do século XX, com o Brasil ficando atrás de vários outros países latino americanos nesse quesito, como Argentina, México, Uruguai e Chile. A Educação se inseriu nesse quadro de atraso, de inexistência do Estado como promotor de políticas públicas, de exclusão social e uma sociedade profundamente desigual. Apenas em 1808 tivemos o primeiro curso universitário do Brasil, quando da chegada da família real portuguesa no Brasil, primeiro na Bahia e depois no Rio de Janeiro. Foi o curso de cirurgia da Bahia, hoje Faculdade de Medicina da UFBA. Ma,s a primeira Universidade estruturada como tal foi constituída apenas em 1934, a Universidade de São Paulo (USP). A Universidade do Brasil (de 1920, que depois se tornaria a UFRJ) era, no início, apenas uma justaposição formal e burocrática de três cursos (Medicina, Direito e Engenharia), sem uma interação ou produção científica universitárias. Houve ainda uma tentativa de criação de uma Universidade do Distrito Federal (UDF), então no Rio de Janeiro, em 1935, pelo baiano Anísio Teixeira, experiência muito interessante pela interdisciplinaridade, atividades de pesquisa, abertura para intercâmbio internacional e o propósito de abrir vagas para um contingente maior da população. Infelizmente, a Ditadura do Estado Novo veio destruir a nascente instituição e a perseguir seu idealizador.
Com o processo de redemocratização em 1946, experimentamos uma expansão do sistema federal de ensino Superior, com a criação das universidades federais da Bahia, Paraná, Minas Gerais, Rio Grande do Sul. Essa expansão continuou especialmente no governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek com as universidades federais de Goiás, Juiz de Fora, Pará, Paraíba, Santa Maria, Fluminense, Rio Grande do Norte e Santa Catarina. A Universidade de Brasília, gestada nesse governo durante a construção da nova capital, entrou em funcionamento em 1962, seguindo o ideal de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro de ter uma universidade com uma pós-graduação forte, que estimulasse a pesquisa e envolvesse a Graduação no tripé universitário moderno de ensino, pesquisa e extensão, uma instituição que tivesse uma carreira docente estável e propiciadora do desenvolvimento científico e tecnológico. Anísio e Darcy defenderam que essa excelência acadêmica, que deveria se equiparar aos principais centros internacionais, jamais poderia se apartar do esforço de superação das desigualdades sociais e da construção das bases da soberania nacional e de um projeto nacional de desenvolvimento, que incluiria necessariamente a soberania científica, tecnológica, o desenvolvimento cultural e a elevação da qualidade da Educação como um todo.
Esses ideais de Anísio e Darcy, apesar da ditadura de 1964 a 1985, conseguem se impor na Universidade pública brasileira, e um dos pilares dessa consolidação universitária que trouxe grandes avanços educacionais, culturais, científicos e econômicos em todos os níveis foi a constituição de uma pós-graduação de alta qualidade, gerenciada e avaliada pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino Superior). Com o parecer do conselheiro Newton Sucupira sobre a pós-graduação, no Conselho Federal de Educação em 1965, as bases da pós-graduação se afirmaram e o Brasil conseguiu avançar rapidamente, em número de cursos de mestrado e doutorado, em produção científica com inserção internacional e na formação de quadros competentes para todas as atividades. Apesar do atraso secular da Educação como um todo, incluindo a Educação Superior no Brasil, país que ainda não superou o atraso e a cultura excludente, a Pós Graduação se converteu num espaço privilegiado para a superação dessas iniquidades. O Brasil hoje já está entre os 10 países no mundo em produção científica, numa avaliação com baremas e por pares que é muito clara.
O que vivemos desde 2017 com a redução dos recursos das universidades federais, do CNPQ, da CAPES e que se aprofundou em 2019 com o ataque à ciência, a perseguição a pesquisadores, a deslegitimação de pesquisas e estudos de órgãos importantes como o INPE e a FIOCRUZ, teve um trágico capítulo em setembro de 2021. O negacionismo, que foi responsável pelo atraso premeditado, que continua hoje, em receber vacinas, e pelos ataques ao Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (INPE) pelo fato desse ter tirado fotos que comprovaram que a Amazônia e o Pantanal estão em rápido processo de extinção, nunca escondeu sua aversão pelo “Iluminismo” da Ciência e da Academia. A conjugação de um espírito autoritário e miliciano com o ataque às instituições científicas é explícita agora e em outros momentos da História, quando movimentos nazifascistas se notabilizaram pela perseguição a cientistas, artistas, pesquisadores, livres pensadores.
No início de setembro, a presidência da CAPES destituiu o Conselho Técnico Científico do Ensino Superior (CTC-ES). Os membros e ex-membros desse importante conselho em carta aberta expressou grande “preocupação com a condução que vem sendo dada pela direção da CAPES a questões de forte interesse da comunidade acadêmica, neste momento em que se consolida a Avaliação Quadrienal 2021. Na reunião do CTC-ES (207a Reunião Ordinária entre 03-05 de agosto de 2021), a presidente da CAPES, Profa. Cláudia Queda de Toledo, foi convidada a se manifestar e dialogar com este Conselho sobre assuntos de forte relevância. Esses assuntos incluíram: 1) a não existência, até àquele momento da reunião, de um Regulamento da Avaliação Quadrienal; 2) a não existência de um Calendário para viabilizar o conjunto de atividades da Avaliação Quadrienal em curso, observando, inclusive, a necessidade da extensão dos mandatos dos Coordenadores de Área; 3) a necessidade de o CTC-ES votar e eleger seu representante junto ao Conselho Superior da CAPES cujo mandato se encerrou em maio/2021.” Leia a íntegra.
Naquele momento se iniciava um processo de instabilidade que poderia comprometer a avaliação dos programas de pós-graduação, que sempre foi feita com transparência e com critérios definidos pelos comitês de área científica, de forma pública e participativa com os pesquisadores de todos os campos de saber, buscando parâmetros que pudessem avaliar o conjunto dos programas no país, com um alto nível de exigência. Essa desídia manifesta nas ações da direção da CAPES indica uma tentativa de fragilizar um sistema robusto e de alta qualidade para permitir que programas de pós-graduação, especialmente de instituições privadas, possam recorrer de decisões de avaliações anteriores ou até mesmo judicializar o processo.
Posteriormente, outro ataque, muito mais profundo, perigoso e preocupante. A Justiça Federal do Rio de Janeiro determinou em 22 de setembro último que a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) suspendesse imediatamente a avaliação dos programas de pós-graduação em andamento. Houve muitos protestos das entidades científicas nacionais e da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), que defendem a continuidade da avaliação. Essa decisão foi tomada pela Justiça após analisar pedido feito pelo MPF (Ministério Público Federal), que investiga supostos “critérios ilícitos usados pela Capes na classificação dos programas de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) no Brasil”, num claro movimento de criminalização e ataques sem provas a instituições importantes para o país. Essa judicialização, provocada por quem desconhece ou procura desconhecer como o processo de avaliação da pós-graduação se realiza há 50 anos, coloca em risco todo o sistema e pode destruir uma arquitetura acadêmica essencial para a soberania nacional.
Já presenciávamos uma judicialização indevida em muitos aspectos da vida universitária, claramente desconhecendo o que define a nossa Constituição Federal pelo seu artigo 207, que trata da autonomia universitária. Já colecionamos muitas decisões de juízes que determinam a entrada de alunos nas instituições contrariando até o preceito constitucional das cotas, amplamente amparadas por jurisprudências no STF e STJ; há decisões de juízes que determinam matrícula de alunos em determinadas disciplinas durante os cursos e até para que diplomas sejam concedidos antes dos alunos completarem suas matrizes curriculares no curso de Medicina, contrariando o entendimento da Universidade. Provavelmente a população vai se interessar em conhecer quais os profissionais com uma formatura por decisão judicial que não tiveram a formação adequada.
Esse fenômeno no meio acadêmico não é isolado, a sociedade brasileira vive um “ativismo judicial” de parcelas do Ministério Público e da Justiça que extrapolam suas atribuições, tomam medidas e decisões complemente ilegais e buscam um lugar nos holofotes da mídia, com interesses que depois vão se desvelando. O recente caso de lawfare contra Lula, que o prendeu ilegalmente por mais de 500 dias, foi desmascarado, e uma teia de cumplicidade entre parcela do MP com a Justiça com objetivos claramente político partidários de eleger o atual presidente da República ficou demonstrado. No presente momento, 18 processos movidos contra o ex-presidente foram anulados, e começa-se a perceber como a lei foi desrespeitada em delações forçadas e fraudulentas, acusações foram feitas sem provas e condenações foram impostas sem um objeto claro. No campo da Universidade, o caso do Reitor da UFSC que foi preso e isolado de sua comunidade, professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, que depois se suicidou, foi um exemplo solar do abuso de autoridade com objetivos claramente políticos contra a Academia, para deslegitimação da Ciência e destruição da “aura” da universidade.
Essa decisão judicial atual contra a avaliação da pós-graduação se embasa em um profundo desconhecimento de como a Ciência é produzida, avaliada, validada e difundida no mundo inteiro, e não somente no Brasil, e a pretensão do juiz, que indica que vai definir quais os critérios de avaliação, ultrapassa o limite do absurdo. Mas como diria Darcy Ribeiro. “A Crise da Educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”. Tanto as ações da atual direção da Capes quanto do movimento que envolveu MP e Justiça na suspensão da avaliação quadrienal dos programas de pós-graduação stricto sensu têm o efeito de destruir um patrimônio nacional.
Podemos certamente indicar que assim como o parque de construção civil e da indústria naval foram destruídas pelo processo de lawfare da “Laja Jato”, com a extinção de pelo menos 5 milhões de empregos e com uma queda no PIB de 4%, o “parque” da pós graduação está sob ataque. Diferentemente do setor produtivo que pode se recuperar dentro de alguns anos, a formação de quadros para a pesquisa e para as empresas, para a inovação e a Ciência demoram para amadurecer e pode ser rapidamente destruída. A fuga de cérebros do Brasil já é uma realidade, pois formamos hoje mais doutores que a França, mas o país diminuiu drasticamente seu investimento das agências de fomentos, e uma desestruturação da pós-graduação terá um efeito de longo prazo, demorado de reverter.
Edição: Elen Carvalho