As instituições de ensino superior públicas são as que mais registram patentes no Brasil.
Os dados divulgados pelo Inpi (Instituto Nacional de Propriedade Industrial), órgão do governo federal responsável por contabilizar títulos industriais, no dia 14 de julho último, trazem informações importantes para uma reflexão de nossa política científica e tecnológica. E lança luz sobre o tema da relação entre universidades, empresas, governos e sobre o conceito de “empreendedorismo”, que vem sendo usado sem muita consistência, mais como peça publicitária ideológica.
Contrariando o senso comum dos discursos de que as universidades estão longe do “mercado” e que deveriam estar mais próximas das “indústrias” para promover a inovação tecnológica, as instituições de ensino superior públicas são as que mais registram patentes no Brasil. Ultrapassando em muito o número de empresas privadas que protocolou algum serviço ou produto. A pesquisa do Inpi registra que entre os anos de 2014 e 2019, 76% das instituições que mais registraram patentes são universidades públicas. Algumas universidades se destacam no protocolo para registro de títulos industriais, como as Universidades Federais de Campina Grande (UFCG), Minas Gerais (UFMG), Paraíba (UFPB) e a Universidade de São Paulo (USP).
Felipe Oliveira, coordenador geral de disseminação para inovação do Inpi, salientou em entrevista à Empresa Brasileira de Comunicação - EBC, que "as universidades ao longo do tempo, principalmente após a promulgação da Lei de Inovação, em 2004, vêm adquirindo conhecimento e enxergando a importância estratégica de não apenas publicar seus artigos, mas também proteger essas invenções através de direitos de propriedade intelectual".
A lei da inovação foi aprovada em 2004 pelo então presidente Lula. Essa lei induziu a criação de parques tecnológicos, estimulou empresas a patrocinarem pesquisas científicas e o trabalho de pesquisadores. Esse resultado serve para debatermos os temas sobre inovação, relação entre Universidades/Centros de pesquisa, empresas e governos/políticas públicas e o conceito de “empreendedorismo”, que foi largamente utilizado no projeto fracassado do “Future-se” do Ministério da Educação nos anos de 2019 e 2020.
As universidades não se recusam a ter um papel de pesquisa e desenvolvimento visando a inovação, inclusive em relação com empresas, privadas e públicas, basta ver o trabalho que a UFRJ e a UFBA tiveram ou ainda têm com a Petrobras. E que várias instituições têm com a Embrapa para o progresso de nossa agropecuária. Não existe preconceito ou resistência de nossas instituições universitárias e centros de pesquisa para trabalhar em parcerias com empresas, e os resultados do levantamento do Inpi demonstram isso. De um lado há um trabalho consistente e resiliente nas instituições que estão produzindo; e do outro lado há pouco interesse ou apoio dado às empresas para esse engajamento.
A lei de inovação foi um marco importante, mas falta uma política industrial no Brasil em que haja políticas de proteção às empresas nacionais, estímulo à sua competitividade, relação com centros de pesquisas nacionais, encomendas públicas que patrocinem o desenvolvimento de tecnologia nacional. O receituário neoliberal do Estado mínimo destruiu o que havia sido construído, como a política de conteúdo nacional para a indústria petrolífera e a indústria naval, e a política de promoção das empresas nacionais para atendimento da demanda interna e disputa por mercados externos. O que tínhamos estruturado no campo da indústria civil pesada, da indústria naval, produtoras de máquinas, na cadeia de produção da Petrobras foi anulado pela operação “Lava Jato”, que fez questão de destruir as empresas competentes nacionais e desmontar a estrutura pública, pelos governos Temer e Bolsonaro, que retiraram o BNDES do papel de financiador e apoiador das empresas nacionais e tornaram o Estado brasileiro anêmico na sua capacidade de induzir, planejar e promover o desenvolvimento econômico.
Outros países que tiveram sucesso nessa trajetória tiveram o Estado como grande arquiteto e maestro de todo o processo de desenvolvimento econômico, científico e tecnológico, como os países do oeste europeu, os Estados Unidos, a Coréia do Sul e mais recentemente a China. O Estado protegia, apoiava, financiava e cobrava dessas empresas por desempenho, brigava no cenário internacional para inseri-las em novos contextos e patrocinava também o desenvolvimento soberano nesse campo da Ciência e Tecnologia, articulando instituições universitárias e centros de pesquisas com esses parques produtivos.
Na medida que o Brasil se converte basicamente num país agroexportador e exportador de commodities minerais, com sua indústria deixando de representar 30% do PIB em 1980 para representar hoje menos de 10%, ele deixa de lado e desconstrói o legado desenvolvimentista da Era Vargas, de Juscelino Kubistchek, do período militar (que teve um papel estatal de planejamento econômico muito marcante também) e mais recentemente dos governos Lula e Dilma. Assim, o país se aproxima da uma situação comparável à anterior a 1930, um país que exportava produtos agrícolas, mas hoje exporta também muitos minérios sem valor agregado. Esse novo/velho desenho que o Brasil tem hoje não estimula as indústrias a investir em inovação, e muitas vezes a Universidade procura e propõe parcerias com indústrias e outras empresas, mas elas não têm capacidade de investimento, falta financiamento e apoio de uma política pública e em outros momentos fica mais barato comprar o produto ou serviço de fornecedores estrangeiros do que desenvolver nacionalmente essa tecnologia.
Há muitas fronteiras econômicas, científicas e tecnológicas a investir, que demandarão uma intervenção do Estado para estimular as iniciativas nacionais (como todos os outros países capitalistas e socialistas desenvolvidos já o fizeram), com financiamento, estímulo à inovação em parceria com as Universidades e centros de pesquisa, reserva de mercados em determinados momentos, proatividade para abertura de espaços fora do Brasil, cooperação com outros países em desenvolvimento. Também serão necessários outros marcos macroeconômicos como uma nova política cambial, fiscal e de investimento do Estado para que saiamos da estagnação econômica que a política de “austeridade fiscal” nos prendeu de forma resoluta desde 2016.
Não existe possibilidade de haver “empreendedorismo” sem um ambiente que favoreça o consumo popular, a ampliação do mercado interno e a busca pelos mercados externos. Uma situação de estagnação, aumento da miséria, incertezas econômicas, crises sanitária e política permanentes não cria um “ambiente” favorável a qualquer novo empreendimento. Por mais talentosos e esforçados que nossos jovens sejam, eles não têm como fazer um empreendimento dar certo com essas variáveis do jeito que estão configuradas hoje. O discurso que basta empenho pessoal, talento e perseverança para fazer um negócio prosperar pode servir para alimentar uma ideologia pró-mercado e contabilizar eventuais fracassos apenas na conta individual dos empreendedores, quando na verdade são as variáveis macroeconômicas e as políticas públicas que formam a moldura, os limites do desenvolvimento individual ou de empresas. Por fim, numa fase do capitalismo financeirizado, sem estímulo para investimentos produtivos e com as empresas em momento de cartelização e oligopólios, é uma quimera pensar que pequenos empreendedores terão um papel de destaque nesse cenário, caso não exista uma política pública para este segmento.
No campo das universidades, especialmente as públicas, é importante salientar que seu papel nunca foi nem poderá ser o de apenas servir a essa política de desenvolvimento econômico e tecnológico soberano. É importante o engajamento dos setores universitários afeitos a esses objetivos, mas a natureza da instituição é mais ampla, complexa, diversificada e se estende para outros campos igualmente importantes. Essa ressalva é importante para desconstruirmos o outro lado da moeda do discurso puramente ideológico do “empreendedorismo”, que é o atrelamento das instituições públicas apenas aos interesses de curto prazo do mundo da produção.
Pela sua natureza e pela necessidade que nações soberanas têm de projetos de longo prazo que visem o desenvolvimento social, cultural, ambiental e de pensamento sobre o país e o mundo, as universidades cumprem também o papel de serem o lócus da Ciência Básica, da Física, Química, Biologia, da Matemática, da pesquisa de base em saúde que não terão uma aplicação imediata num produto, mas resultarão em uma base ampla e sofisticada de pesquisa científica para futuras aplicações, mas que desde já significarão a ampliação do saber humano, que por si só nos realiza como gênero humano.
Hoje a fronteira da pesquisa científica que não tem uma aplicação imediata no “mercado” são os reatores de fusão nuclear, e os Estados Unidos, a Europa e a China investem muitos bilhões de dólares numa pesquisa que nos próximos 50 anos não deve ter uma aplicação econômica “prática”. Da mesma maneira, a pesquisa espacial hoje se volta ao mapeamento do universo e a exploração de planetas no sistema solar e em outros sistemas, mas isso permite uma compreensão do ser humano no Universo que é mais ampla que uma pesquisa para produzir algo que gere lucro.
Apesar dessa visão de longo prazo, a corrida espacial que se iniciou em 1957 e todos os seus estágios hoje tiveram como legados os satélites de comunicação, de geoprocessamento, de GPS, de pesquisa, o desenvolvimento da microinformática, da internet e uma gama vastíssima de aplicações no nosso cotidiano. Essas pesquisas hoje nos dão uma visão muito segura do nefasto impacto ambiental de nossa civilização e apresentam alternativas que podem resultar na sobrevivência da espécie humana na Terra. Um projeto de longo prazo demanda uma instituição universitária e uma política de pesquisa também de longo prazo, de projeto de futuro e não premidas pela necessidade de lucros fáceis e imediatos.
A universidade também é o espaço das Humanidades, da Filosofia, das Artes, da Educação e da formação de professores, e esses campos não se balizam ou se constituem pela relação com a aplicação econômica, mas pela necessidade de compreensão do ser humano e de sua sociedade, da formação para uma visão mais ampla e mais integral de mundo, comprometida com os valores da solidariedade, da autonomia, da civilização, do respeito aos outros seres humanos e à natureza, uma nova forma de sentir, agir e pensar no mundo. A instituição universitária se estrutura dessa maneira, diversa, plural, com tempos e espaços diferentes, atribuições distintas e complementares, como um projeto de longo prazo, com um interesse público, societal e planetário mais amplo que os interesses individuais, de grupos ou do lucro imediato.
Edição: Jamile Araújo