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Coluna

“Liberdade, liberdade, abra as asas sobre nós”

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O ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello ao lado do presidente Jair Bolsonaro em manifestação no Rio de Janeiro - Fernando Frazão / Agencia Brasil
A contraposição às ameaças deve ser por parte da sociedade civil organizada

A recente decisão do comandante do Exército de não punir o ex-ministro da Saúde e general da ativa do exército, Eduardo Pazzuello, pela participação em ato político no domingo, dia 23 de maio, no Rio de Janeiro, foi mais um passo a caminho da instabilidade, da destruição das instituições e da estratégia do caos como forma de destruição do arcabouço democrático que a sociedade brasileira vinha construindo desde a Constituição de 1988, a Constituição Cidadã. Não foi o primeiro passo, nem será o último na escalada do atual governo federal para destruir as instituições e criar um clima no Brasil muito parecido com o que foi criado na Colômbia por décadas, quando, com a desculpa do combate ao narcotráfico, instalou-se um regime de terror em que os paramilitares de direita mataram lideranças populares e solaparam as liberdades democráticas.

Felizmente, aqui no Brasil algumas instituições reagiram, mas não todas e nem a maior parte do capital nacional. Mas esse não foi, repito, o primeiro passo na marcha da construção da barbárie. Em 2020, o então ministro da Defesa, Fernando Azevedo, sobrevoou uma manifestação de apoio à intervenção militar e ao fechamento do STF em Brasília, dando apoio à mesma, ao lado do presidente da república. Anteriormente, em 2018, o comandante do exército, General Villas Boas, fez um “post” no Twitter ameaçando o STF na véspera do julgamento sobre prisão de segunda instância, o que determinou logo após a prisão de Lula. Naquela época, não houve protestos do STF, nem da imprensa nacional hegemônica. Antes de 2018 e durante toda a campanha presidencial, militares da ativa participaram ativamente nos ataques ao governo Dilma, ao PT e na campanha de Bolsonaro. 

Mas esse não foi o começo. Hoje muitos dos que condenam a quebra da hierarquia e da disciplina nas forças armadas, a politização dessas forças e as ameaças de quebra da institucionalidade estiveram no mesmo barco que fez o impeachment sem crime de responsabilidade contra a presidente Dilma, um marco na desconstrução da Democracia brasileira. A partir desse momento, os ataques às instituições, que foram bem preparados por uma campanha de demonização da política, da Democracia, dos partidos e do Estado e suas instituições, foram intensificados. Foram ataques e desestabilizações que contaram com um ativismo judicial que ainda persiste, com a Lava Jato que afortunadamente já foi desmascarada, e com a campanha pela volta de uma intervenção militar que resultou num governo militarizado e incompetente para manter as políticas públicas.

Não se deve esquecer, por conta da clareza solar dos atuais ataques à vida democrática que estamos vivendo hoje, que a outra face dessa moeda autoritária foi um programa econômico, social e de Estado de destruição das políticas sociais construídas pelos governos civis desde a Constituição de 1988, a partir da mobilização dos movimentos sociais. Exemplos desse programa foram a emenda constitucional 95, que congelou os investimentos públicos por 20 anos; a reforma trabalhista que destruiu os direitos trabalhistas dos trabalhadores e não criou nenhum emprego novo; a reforma da previdência, que felizmente os setores democráticos e progressistas no Congresso conseguiram barrar o cerne dessa reforma que era o regime de capitalização/privatização da previdência no país, mas não evitou a retirada de direitos dos trabalhadores dos setores público e privado.

Nesse episódio mais recente de 23 de maio, cabe uma reflexão sobre um passado recente, o golpe e a ditadura civil e militar de 1964 a 1985. Um dos eventos que marcou as vésperas do golpe de 1º de abril foi a revolta dos marinheiros em 25 de março de 1964, que foi apontada pelos militares como o motivo para dar o golpe, justamente afirmando que o então presidente da república, João Goulart, havia permitido e estimulado uma quebra da hierarquia e da disciplina nas forças, e que isso era intolerável. Entretanto, hoje são esses mesmos militares saudosistas da ditadura que sistematicamente quebram a disciplina, afrontam as leis, rompem com a legalidade. Cabe uma reflexão sobre quem defende as instituições no país e quem as abomina. Está claro que as forças armadas, ao coadunarem e serem submissas ao projeto de poder neofascista do atual governo, são contra a lei e a ordem constituída, enquanto que os setores democráticas, e dentre esses os setores de esquerda, defendem a Constituição, a Democracia e o respeito às regras do jogo. No Brasil, os militares se constituem nos “subversivos” da ordem constituída e os governos de esquerda foram os maiores construtores e defensores da ordem democrática que emergiu da constituinte pós-ditadura militar.

No Brasil, a Revolta dos Marinheiros foi um movimento oriundo da resistência dos marinheiros, reunidos na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro no dia 25 de março de 1964, devido à ordem de prisão emitida pelo ministro da Marinha, Sílvio Mota. A ordem de prisão foi devida a uma reunião comemorativa do segundo aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, sendo que essa entidade era considerada ilegal. A reunião contou com mais de dois mil marinheiros de baixa patente (marinheiros e taifeiros), realizada no prédio do Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio de Janeiro. Os marinheiros exigiam melhores condições para os militares e também pediam apoio às reformas políticas de base propostas pelo presidente João Goulart. Os militares, inclusive o então Ministro da Marinha, Sílvio Mota, exigiram a prisão de todos eles. Entretanto, os Fuzileiros Navais enviados par reprimir a manifestação juntaram-se ao movimento.

Jango expediu ordens proibindo qualquer repressão ou invasão da assembleia dos marinheiros e exonerou o Ministro Mota. Posteriormente anistiou os marinheiros que foram presos após o fim do evento. Logo depois, em 30 de março, véspera do golpe, Goulart compareceu a uma reunião de sargentos, no Automóvel Clube, discursando em prol das reformas pretendidas pelo governo e invocando o apoio das forças armadas. Esse fato serviu de justificativa para a intervenção militar, afirmando que se tratava de uma quebra da hierarquia e da disciplina. 

A análise desses episódios em diferentes momentos históricos demonstra que o objetivo não é e nunca foi a defesa da “lei da ordem”, mas sim a subversão da ordem para implantar o regime de terror político e de defesa dos interesses do grande capital, sendo que hoje é do grande capital financeiro. Cabe aos setores democráticos e progressistas defender a institucionalidade e dentro das regras institucionais aprofundar a nossa Democracia, para que não seja apenas uma Democracia formal, que garante apenas formalmente, na lei, direitos iguais e liberdades democráticas que não se contrapõe à desigualdade social e econômica brutal. A construção de uma Democracia mais substantiva, com a consolidação de direitos sociais, a reversão da perda de direitos dos governos Temer e Bolsonaro e a edificação de novos direitos sociais, econômicos e culturais, deve estar no centro de um projeto de desenvolvimento e de soberania.

Comete um erro quem aponta que devemos buscar os “militares que defendem a legalidade”, discurso muito presente nos últimos dias na imprensa. Essa postura de ficar num jogo de ter militares “bons” contra militares “maus” deu errado no Brasil e em todos os países latino-americanos. Devemos nos lembrar que o general Pinochet era considerado no governo de Salvador Allende, no Chile em 1973, como um defensor da Democracia e da legalidade, e depois Pinochet esteve à frente do golpe. O palco da disputa política não é por dentro nem convencendo as forças armadas, mas é no campo da sociedade civil e política, dos partidos, dos movimentos, dos políticos, dos cidadãos, das entidades sindicais, profissionais, das universidades, das entidades científicas. Não cabe aos militares entrar na política, nem, supostamente, para defender os pontos de vista da legalidade. 

Cabe às FFAA cumprirem a missão constitucional de defesa do país de ameaças externas e garantir a segurança no plano internacional, coisa que não tem sido feita, pois hoje o Brasil é submisso aos Estados Unidos. O general-de-brigada Alcides Valeriano de Faria Júnior é hoje subcomandante para interoperabilidade do Exército Sul dos Estados Unidos. O cargo é um dos três postos mais altos da unidade, que coordena os interesses estratégicos e militares dos EUA para América do Sul, América Central e Caribe. Ou seja, estamos subordinados militarmente em uma organização comandada pelos EUA para garantir os interesses dos EUA em nosso continente.

As forças armadas em países subdesenvolvidos da periferia do capitalismo acabam por não ter uma identidade com os interesses nacionais e com seu povo na luta pela soberania nacional (econômica, cultural tecnológica), se ligando mais à antigas e novas metrópoles, se imiscuindo numa tarefa que não é sua, como a garantia da segurança interna, do suposto combate à subversão ou de “moderadora” do processo político. 

Comete erro quem identifica apenas o setor militar nesse processo de desestruturação da Democracia. Há claramente uma anuência do grande capital financeiro, que vem lucrando como nunca nessa pandemia e apresentou 20 novos bilionários no Brasil nesse período em que a fome e o desemprego aumentaram no país, em 2020. Há uma compactuação da maior parte do agronegócio e das mineradoras, que se beneficiam da destruição do arcabouço institucional de defesa do meio ambiente e das comunidades indígenas. Uma parcela significativa da representação política no Congresso, como a direção das duas casas legislativas, é aliada desse projeto do caos e da morte até o momento, em troca de cargos e de emendas do “orçamento paralelo” que irrigou a base aliada com 3 bilhões de reais até agora e deve servir para eleger uma ampla base parlamentar para a reeleição do atual governo.

A política de liberalização de compra de armamento, um dos cernes da política governamental, está claramente posta como a outra estratégia de promover a destruição da institucionalidade, criando grupos paramilitares de direita que se aliariam com a base das polícias nos estados e promoveriam a ruptura institucional, nos moldes do que ocorreu na Bolívia, onde o golpe de 2019 foi feito por parcelas da polícia, grupos fundamentalistas religiosos, paramilitares e uma base parlamentar golpista. Em 2020, uma eleição, que não era do interesse do então governo golpista, foi realizada na Bolívia e restituiu o governo aos setores populares com uma legitimidade esmagadora. Os recentes casos de insubordinação e abuso de autoridade da PM em estados como Goiás (onde um dirigente do PT foi detido sob a alegação de contrariar a Lei de Segurança Nacional), em Pernambuco e em Belo Horizonte na repressão aos movimentos de 29 de maio do Fora Bolsonaro indicam que há segmentos polarizados para um projeto de poder golpista e fascista.

A contraposição a essas ameaças deve ser por parte da sociedade civil organizada e de uma frente de defesa da Democracia. Não se deve depositar nas mãos de militares a missão de garantir a lei e a ordem, a Constituição, nem que esses segmentos entrem na disputa política. Precisamos, efetivamente e finalmente, construir um Estado nacional, com características modernas mínimas de profissionalização, respeito às leis, defesa da Sociedade e não alinhamento com interesses estrangeiros ou aos interesses de grupos minoritários nacionais ou de milícias.
 

Edição: Elen Carvalho