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Coluna

Intervenções em universidades e disputa de hegemonia

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"Essa revolução no acesso e permanência nas universidades federais significou uma mudança social de caráter inédito em nossa sociedade", ressalta Penildon. - Divulgação
A Universidade ocupa esse espaço da mobilidade, da transformação, da Democracia

No último dia 23 de fevereiro, o Brasil assistiu à mais recente nomeação de Reitor de uma Universidade federal, Antônio Fernandes Filho, na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) na Paraíba. E, mais uma vez, não foi o mais votado. Trata-se do 22º reitor que não ficou em primeiro na consulta pública, mas que foi indicado pelo governo federal desde janeiro de 2019. 

Desde o início do atual governo, foram nomeados sete reitores pro tempore que não participaram da consulta pública: na Universidade Federal de Sergipe (UFS), Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet-RJ) e na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Além desses que nem participaram da consulta, foram nomeados quatro reitores que ficaram em 2º lugar na lista tríplice – Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) e Universidade Federal de Pelotas (UFPel); e outros dez que ficaram em 3º lugar na consulta feita nas comunidades universitárias: na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Federal Rural do Semi-Árido/RN (Ufersa), Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri/MG (UFVJM), Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Universidade Federal do Piauí (UFPI), Universidade Federal de Itajubá (Unifei), além da UFCG.

O argumento utilizado para a escolha pelo governo federal de reitores que não haviam sido escolhidos pelas suas comunidades até o ano de 2002, no final do governo de Fernando Henrique Cardoso, era de que a escolha de um dirigente pela sua comunidade traria prejuízos à vida acadêmica e à qualidade do ensino, da pesquisa e da extensão. Havia um discurso oficial, majoritariamente em desacordo com o entendimento de estudantes, professores e técnicos das universidades, de que a participação social e política na definição dos destinos de uma instituição de caráter universitário, realmente de perfil único pela sua autonomia e liberdade de cátedra e de pesquisa, seria danosa. Segundo os defensores da indicação governamental sem respeitar a vontade da comunidade, haveria um desvirtuamento das atribuições e do espírito universitário se as comunidades escolhessem seus dirigentes, pois, em sua opinião, dessa forma, interesses estranhos às instituições estariam prevalecendo, e, por isso, caberia ao presidente da República, por meio do MEC, escolher a melhor opção. 

Esse discurso nunca teve muita lógica, pois as escolhas feitas nos palácios de Brasília tinham muitos interesses estranhos às comunidades, justamente o contrário do que se apregoava, e o jogo político da ocupação do poder universitário sempre esteve sob a mira de vários grupos políticos na máquina do Estado, até externos às instituições.

Diferentemente, de 2003 a 2016, durante os governos Lula e Dilma, as decisões das comunidades nas consultas públicas foram referendadas automaticamente pelo governo federal, e esse período não foi, sob qualquer prisma, um momento de retrocessos ou desvirtuamentos das universidades. Na verdade, as universidades, além de experimentarem um processo de pacificação em suas relações internas e externas, por conta da natural liderança e legitimidade que Reitores eleitos têm para lidar com as conhecidas disputas e tensionamentos da vida universitária, a Universidade Federal brasileira melhorou em todos os índices. 

Avançou de forma inédita em índices de ampliação, abertura de novos cursos, cursos noturnos, interiorização de instituições. As universidades federais mais do que duplicaram o número de vagas na Graduação e implantaram cotas que democratizaram o acesso a segmentos historicamente discriminados. O Programa de Reestruturação das Universidades Federais (REUNI), de 2007/2008, foi responsável pela mudança de perfil de nossas instituições, que diferentemente do perfil da década de 1990, hoje é majoritariamente negro, de filhos da classe trabalhadora, oriundos de escolas públicas. Também é uma universidade mais interiorizada, pois foram criadas 18 universidades federais, e criados mais de 173 campi universitários, sempre no interior, fora das capitais. Segundo dados das pesquisas do FONAPRACE, Fórum de Pró-Reitores de Assistência Estudantil das Instituições Federais de Educação Superior (IFES), as universidades federais têm 75% dos seus alunos oriundos de famílias com renda per capta de até 1,5 salários mínimos, em dados de 2019. Embora essa faixa seja de famílias pobres ou de baixa classe média, é importante ressaltar que um contingente de 27% de alunos são de famílias com rendimento per capta de até 0,5 salário mínimo. Foi criado um programa de assistência estudantil nacional, o PNAES, que chegou a receber um bilhão de reais no sua fase mais exitosa, essencial para a permanência desses estudantes em seus estudos.

Essa revolução no acesso e permanência nas universidades federais significou uma mudança social de caráter inédito em nossa sociedade e contribuiu muito para a mobilidade social de setores que historicamente foram excluídos ou marginalizados. Mas a maior inclusão social não provocou um rebaixamento nos níveis de exigência ou na qualidade do trabalho acadêmico, pois as avaliações do INEP-MEC sobre os cursos de Graduação indicam um avanço significativo nos seus resultados, com um consistente aumento das notas. Nos cursos de Pós-Graduação houve resultado semelhante, com a avaliação da CAPES/MEC assinalando um crescimento no desempenho dos mestrados e doutorados, que também tiveram uma ampliação de número de cursos e de vagas. Quando observamos a publicação brasileira em periódicos internacionais, temos mais uma demonstração do crescimento e da força da Ciência nacional e da sua internacionalização.

Um exemplo desse crescimento da qualidade, com avaliação de pares estrangeiros, é o Fator de Impacto, um dos indicadores de qualidade para as revistas indexadas na Web of Science. Um estudo indicou que havia 11 periódicos brasileiros indexados em 1997; em 2008, 31; e em 2018, 158. Dentro desse universo de 158 indexadas, 99 revistas tem Fator de Impacto maior que 0.5 (62.7%); 54 tem Fator de Impacto maior que 1.0 (34.2%); 10 tem Fator Impacto maior que 2.0 (6.3%); e duas tem Fator Impacto maior que 3.0 (1,3%). Veja mais aqui.

Ao final desse período não havia qualquer incompatibilidade entre a escolha dos reitores pelas suas comunidades, as políticas de elevação da qualidade do ensino, da pesquisa e da extensão e a expansão e democratização do acesso às instituições. A partir do atual governo, entretanto, passou a haver um trabalho sistemático para mudar a direção das universidades, torná-las “aliadas” ideológicas do presidente, com gestores que defendiam o ideário bolsonarista e com resultados desastrosos para a convivência interna e os encaminhamentos da gestão.

O interesse das nomeações não é de contribuir para o avanço das universidades, mas submetê-las ao que o governo passou a chamar de “guerra cultural”, ao lado dos ataques aos direitos sociais, à liberdade de pesquisa, ataques às áreas das humanidades, artes e até as científicas, quando contrariavam os discursos oficiais. Essa ocupação de espaços de poder universitário tem um objetivo mais amplo, que podemos compreender melhor ao utilizarmos como instrumento de análise a teoria de Antônio Gramsci, marxista italiano que desenvolveu uma concepção de Estado mais adequada às interpretações contemporâneas. 

As universidades são parte do Estado, que envolve a sociedade política e a sociedade civil, e o poder de Estado não poderia ser compreendido apenas como o poder de coerção, repressão militar, embora esse poder fosse ocasionalmente usado. O Estado mantêm o poder mais pelo consenso, pelos valores culturais e morais que são hegemônicos e são produzidos pelas “casamatas do poder”, espaços de produção e reprodução do “senso comum”, a escola, as igrejas, os meios de comunicação, os partidos políticos, os movimentos sociais. Esse consenso mantém a ordem social e é produto de um “bloco histórico” que dirige a Sociedade politicamente, socialmente, moralmente. 

Não é adequado interpretar a cultura, a ideologia, os valores apenas como consequência das forças produtivas, pois tudo faz parte de um todo social e de suas relações sociais de produção. O mercado também produz Cultura, impregnada pela alienação, pelo fetichismo, e Gramsci identifica até o modelo de produção fordista, que moldou a produção das grandes indústrias como um modelo que foi apropriado e se reproduziu nas relações sociais, familiares, sexuais e na sociedade política. Mercado, produção econômica, Cultura e valores se entrelaçam e mutuamente interferem.

Não é possível mudar a Sociedade apenas com uma tomada militar do Estado ou a expropriação formal dos meios de produção, pois existe um amálgama de cultura que normatiza, organiza e reproduz as relações sociais e seus valores e concepções de mundo. 

No Brasil, a maior parte desses aparatos que produzem a Cultura está em mãos dos setores dominantes, como os meios de comunicação, as igrejas que têm demonstrado um engajamento político conservador crescente, assim como aparelhos de Estado como o poder judiciário, as polícias, as forças armadas. Poucos aparatos do Estado não reproduzem os interesses das classes dominantes, como por exemplo a Justiça do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho, o Incra, a Funai e principalmente as escolares e as instituições universitárias. Pela sua natureza autônoma, crítica e de liberdade de pesquisa e de cátedra, as universidades se convertem em espaços do livre pensar, do confronto de ideias, da valorização da Ciência, das humanidades e da Cultura, um espaço diverso e plural que valoriza a diversidade e a pluralidade, e por conseguinte se converte em espaço democrático, de liberdade de expressão.

Essas características incomodam uma visão de mundo autoritária, e principalmente uma visão de mundo reativa ao avanço do processo civilizacional que o mundo e o Brasil têm experimentado. O estabelecimento no Brasil de uma Constituição democrática e promotora de direitos sociais, econômicos e culturais, a superação de racismos e de preconceitos contra as mulheres, o avanço dos negros e das mulheres nas universidades, no mercado de trabalho e na esfera pública, a presença agora explícita de pessoas LGBTQI+ em diversos espaços, tudo isso é positivo. Mas esses fenômenos experimentam resistências de segmentos sociais ainda apegados a uma mundo onde as mulheres não saíam de casa, os negros não tinham qualquer espaço, um tempo mais “seguro” para quem se beneficiava dessa ordem social, o branco, o homem, o heteronormativo. 

Por outro lado, o avanço científico e tecnológico e o florescimento da cultura nos espaços sociais questionam os valores culturais, provocam mobilidade social e de pensamento, e isso provoca a reação de medo ou desconforto nos saudosos de um passado que muitas vezes nunca existiu.

A Universidade ocupa esse espaço da mobilidade, da transformação, da Democracia, da liberdade de expressão e de crítica, o espaço da Ciência que indica os limites da forma de viver do ser humano e constrói uma visão de sucessivas “revoluções copernicanas”, onde o humano não está no centro do Universo, nem se converte na finalidade última da Natureza. Por conta disso, as universidades passam a ser vistas como contrárias ao projeto conservador e “restaurador” de uma ordem social superada pela visão democrática, científica e de justiça social. Nesse âmbito, a Universidade, assim como a Ciência e a Cultura devem ser impedidas de realizar sua natureza, devem ser diminuídas ou até mesmo desmontadas se possível, nessa visão terraplanista e negacionista da realidade. As intervenções nas universidades têm, então, um aspecto de ocupação de espaços políticos pelos grupos alinhados ao governo, mas transparece aqui um projeto mais amplo e de longo prazo na Sociedade.

Edição: Elen Carvalho