Há doenças piores que as doenças.
(Fernando Pessoa
No dia 11 de janeiro de 2021, a Ford comunicou o encerramento das atividades da fábrica em Camaçari (região metropolitana de Salvador), na fábrica de motores em Taubaté (São Paulo) e na fábrica da Troller em Horizonte (Ceará). Várias análises estão sendo feitas em relação ao impacto político, social e econômico desse encerramento. Entretanto, precisamos acrescentar alguns elementos importantes para pensar em saídas que sejam relevantes para a sociedade brasileira.
O primeiro elemento é sobre, justamente, a falta de renda do consumo interno, uma vez que essas indústrias estavam voltadas para as vendas ao mercado brasileiro. Com o programa do Inovar-Auto, em 2012, o qual incentivava essa elevação do parque industrial em suas estruturas produtivas, chegamos a marca de quase 4 milhões de carros produzidos. Após o golpe de 2015, e nos anos subsequentes, com as reformas trabalhistas, com o teto de gastos implementado, não conseguimos manter a renda do mercado interno e chegamos a cifra menor do que 3 milhões de carros produzidos. Uma queda relevante que aumentou a ociosidade das indústrias.
Um segundo elemento importante é sobre a fábrica da Ford. O Complexo Industrial Ford Nordeste (CIFN) tem uma capacidade de produção de 250.000 veículos por ano. Uma infraestrutura excelente de tecnologia que conta com a produção metalúrgica, de soldagens, estampagens toda robotizada, chamada de Body Shop; a área da pintura totalmente controlada, com as técnicas mais avançadas dos processos químicos; logo após, a carroceria entra no processo de montagem, na linha produtiva. O sistema de gestão de produção é o considerado Toyotismo, com o uso das ferramentas de Just in Time, onde os "sistemistas" (empresas terceirizadas) estão ligadas dentro do complexo e na linha de montagem.
Quando o Complexo foi criado, eram mais de 30 “sistemistas" alocados dentro do complexo industrial. Esse conceito fordista/toyotista consegue agrupar vários setores produtivos paralelamente para atender exclusivamente a linha de montagem, dentro de um conceito de processo de produção puxada, onde o carro somente será produzido após a venda na concessionária, evitando assim estoques de produtos acabados. Em resumo, em termos de gestão de produção, o que há de mais avançado das teorias capitalista de produção, com trabalhadoras e trabalhadores altamente qualificados e “multifuncionais”, como manda o figurino das ditas “boas práticas” de gestão.
Dentro dessa gestão existe um elemento “interessante", que as grandes indústrias capitalistas desejam em termos de gestão da produção. Existe um ponto específico, uma espécie de leitor de código de barras, onde somente o carro produzido e em condições de vendas, pode passar. Assim sendo, a Ford fatura os sistemistas por carro que passa por esse ponto. Caso aconteça algo na montagem, ou se o carro precisa de retrabalho, e de alguma forma não passar por esse ponto, a Ford não fatura e não paga os sistemistas. O significado disso é que o prejuízo é socializado com os sistemistas, uma vez que apenas um desses sistemas cometem algum retrabalho do carro, todos não irão receber, mesmo depois de produzido. Então existe essa cultura, essa lógica de que não pode haver erros de nenhum sistemista, pois ninguém receberá sobre o trabalho produzido.
Para além do parque industrial tecnológico da linha de montagem, existe também um fábrica de motores de última geração tecnológica, onde são produzidos os motores de 3 cilindros. Existe também um porto próprio em Aratu, onde a Ford importa e exporta produtos e peças oriundas de quaisquer partes do mundo. O CIFN está conectado diretamente à rede global de internet via cabos e fibra óptica - backbone. Em suma, não é apenas um complexo industrial, é um complexo logístico, industrial e de comunicação que está sendo descontinuado dentro da Bahia. Somente essas condições já colocam essa fábrica em um lugar diferenciado de uma indústria qualquer. Esses elementos são importantes para analisarmos e refletirmos quais são as saídas viáveis.
A partir desses elementos, precisamos discutir quais são as possibilidades que se abrem para utilizar essa estrutura, esse capital produtivo. Temos que ter em mente que não podemos simplesmente buscar alternativas em uma montadora comum de carros individuais, que estará sujeita, assim como a Ford, à volatilidade do mercado nacional e do mercado global.
Abre-se um momento histórico único, muito peculiar, que nos impulsiona a pensar estrategicamente, para não tomar decisões somente no curto prazo. O que significa, a longo prazo, a utilização dessa fábrica? Qual a estratégia de política industrial que queremos?
No caso da Bahia, especificamente, existe um aspecto de relevância que é a construção do VLT do subúrbio. A empresa chinesa BYD ganhou a licitação dessa importante obra, conduzida pelo governo estadual. A BYD tem em seu portfólio a construção de ônibus e caminhões de lixo elétricos, construções de vagões para VLT, metrôs, enfim, transportes de mobilidade urbana e de massas.
Pensando estrategicamente, os veículos automotores individuais, em algum tempo, serão obsoletos. Os veículos compartilhados e os veículos autônomos estarão presentes em nosso dia a dia. Não podemos cair no mesmo dilema da Ford e trazer quaisquer outras indústrias desse tipo. Com essa estrutura tecnológica, devemos pensar e refletir do ponto de vista da ocupação urbana, do ponto de vista ambiental, do ponto de vista da produção de Ciência e Tecnologia. Não se torna complicada uma saída tipo uma Joint Venture ou mesmo uma Estatização desse capital produtivo para a indução dessas inovações. Precisamos somente de uma readequação, uma reconversão industrial.
Junto com o Consórcio Nordeste podemos estruturar e viabilizar economicamente esse parque industrial com demandas das capitais nordestinas, diminuindo, assim, os custos e proporcionando para a Região Nordeste um novo polo de veículos elétricos, alimentando as frotas urbanas de mobilidade urbana, de caminhões de coleta de resíduo de forma elétrica.
Um momento histórico marcante para economia nordestina e de produção de Ciência e Tecnologia, no qual é possível fomentar um plano estratégico de política industrial a longo prazo, um projeto de país e um projeto de soberania nacional.
Edição: Elen Carvalho