No ano 2000/ 2001, alvoroçava-se uma série de perspectivas de fim do mundo que mobilizavam calendários de povos antigos, apocalipse e numerologias na virada do século. Rompemos o ano de 2021, talvez, com o Tempo do Fim mais próximo dessas expectativas, “assombrados diante das consequências das nossas condições sociais, aqui apresentadas sem véus e permanecemos espantados com o fato de este mundo enlouquecido ainda continuar funcionando”. O que poderia ser uma indagação do “novo milênio”, o supersticioso século XXI, na verdade, é uma caracterização da situação da classe trabalhadora na Inglaterra no século XIX, publicado por Friedrich Engels em 1845.
Esse autor nos pega pelas mãos e nos leva pelas ruas das cidades berço da Revolução Industrial para observar as “habitações insalubres em bairros que geralmente não tinham calçamento, as ruas eram sujas e não havia esgoto. Soma-se a esse cenário de miséria uma alimentação ruim e roupas em farrapos”. Hoje, cerca de 45,2 milhões de brasileiros vivem em domicílios com alguma inadequação, segundo o IBGE. Desses, 31,3 milhões são de raça/cor preta ou parda. Os dados sobre acesso ao saneamento básico são bem ilustrativos de uma cena do fim do século XIX e diz respeito ao abastecimento de água por rede geral, esgotamento sanitário por rede coletora e coleta domiciliar direta ou indireta de lixo. Quem supor que ausência de serviço público de saneamento fazia parte de um cenário do século retrasado, no Brasil (dados 2019), a rede geral de água abastece 84,7% dos domicílios e a rede coletora contempla não mais de 65,8% dos domicílios.
A pandemia de Covid-19 declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em março de 2020, levou esse a ser um ano em que experimentamos a quarentena e o isolamento social nessas condições precárias. E é sobre as mulheres responsáveis por 75% do trabalho de cuidado não remunerado, segundo a o relatório da Oxfam (2020), que recai a sobrecarga desse “novo normal”.
Ficamos em casas inadequadas e com fome de comida e de visão de mundo. Cerca de 25,9% da população mundial, ou seja, dois bilhões de pessoas, passaram fome ou não tiveram acesso a alimentos nutritivos e suficientes em 2019. Com a pandemia, uma estimativa preliminar da FAO/ONU é que entre 83 e 132 milhões de pessoas no mundo se somem ao número total de desnutridos em 2020. Estudos do Banco Mundial falam em “pobreza de aprendizagem”: devido à falta de recursos e de criatividade, durante a pandemia, mais de 72 milhões de crianças em idade escolar estariam nessa condição.
A descrição de Engels se concentra nas condições precárias de trabalho, as longas jornadas de trabalho, baixos salários, ausência de regulamentação e reserva de desempregados. A chamada quarta revolução industrial emprega mão de menores de 18 anos e permite trabalho noturno, proibido pela “lei do aprendiz” na primeira revolução industrial. O futuro da classe trabalhadora nesse início de ano rebobina séculos.
A fome e a morte pelo vírus não ficaram nas despedidas da virada de ano. São por volta de 200 mil óbitos e mais de 6.8 milhões de diagnósticos de Covid-19, vidas humanas que esse ano acusa a ausência. As contas não fecham, a inadimplência aumenta, o inquilino não paga o aluguel, desencadeia a interrupção da cadeia de pagamentos de contas de água, luz, serviços de internet. Os deserdados do auxílio emergencial não vislumbram uma saída coletiva para a crise que amarga. São 67 milhões de brasileiras e brasileiros que eram beneficiados pelas parcelas do auxílio e que, a partir de agora, é cada um por si.
A sociedade de consumo e a sociedade do espetáculo não oferecem a promessa da prosperidade. É razoável pensar que esse quadro, que remete às condições do início do capitalismo, gere reação? O Brasil de Fato, com uma visão popular do Brasil e do Mundo te convida a, nesse início de ano, enxergar para além do horizonte imediato e ver que tipo de sociedade e de seres humanos estão se construindo numa vida pós-pandêmica, e necessariamente pós-capitalista, a partir das ações de solidariedade, a partir da elevação do nível de consciência que depende do povo organizado, para salvar a vida do povo, seja nas periferias das grandes cidades ou nos rincões do Brasil profundo.
Ninguém individualmente consegue fazer planos ou fechar as contas de janeiro ou fevereiro. É necessário uma saída coletiva, não voltaremos ao “normal”, nem a um “novo normal”, mas estamos diante de um novo horizonte, aspirado a pelo menos dois séculos pelos trabalhadores e trabalhadores e que está sendo criado no presente pelas lutas da classe trabalhadora por ficar viva e existir contra tantas privações materiais. É uma luta pelo direito de sonhar com o futuro. E o futuro será o que fizermos hoje em defesa da vida, dos direitos e da paz.
Edição: Elen Carvalho