A tentativa de revogação é não só uma crueldade, como também ilegal
A tentativa de revogação de portarias da saúde mental é mais um ação que evidencia a gestão racista, genocida e elitista do governo federal. Compõe o extenso jogo sujo que trava para acabar com o SUS, aos poucos, empobrecendo financeiramente seus departamentos e os sucateando.
A capital baiana, dentre as capitais, vai ser uma das mais atingidas caso as portarias sejam revogadas. Com uma população estimada em quase 3 milhões, sendo 81% das pessoas autodeclaradas negras, Salvador revela um cenário de desigualdade social latente, consequência de 300 anos de escravidão, e, mais recente, de gestões municipais que não valorizam a maior parcela de sua população.
Exemplo disso pode ser visto na Lei Orçamentária Anual de Salvador prevista para 2021. Importante para traçar estratégias e implementar políticas públicas, a LOA revela, de cara, a inversão de prioridades da prefeitura, atualmente nas mãos de ACM Neto, e depois do seu sucessor, Bruno Reis. Salvador é a 2º capital do Brasil que mais gasta com publicidade e propaganda, perdendo apenas para São Paulo. Na LOA de 2021, a previsão é gastar 49,5 milhões enquanto em 2020 foram R$ 39 milhões, enquanto o gasto com a Pasta de Reparação e Combate ao Racismo dispõe só de R$ 5,8 milhões.
A relação que quero fazer é simples: estas portarias que podem ser revogadas são mantenedoras de equipamentos como os Consultórios nas Ruas, o Serviço Residencial Terapêutico e a Comissão de Acompanhamento do Programa De Volta para Casa, que integram os programas de saúde pública mental e atenção psicossocial. Quem é assistido por esses programas? A maioria da população negra, que, infelizmente, também integra quase a totalidade de pessoas em situação de rua.
Com o fim destes programas, com a falta de investimento da prefeitura em políticas públicas de emprego e geração de renda, se torna iminente o aumento da pobreza e de pessoas em situação de rua em Salvador com a saúde mental e psicológica vulnerável.
Para se ter uma ideia do descaso na capital baiana, o número de moradores de rua sequer é contabilizado corretamente pela prefeitura de Salvador. A pesquisa que temos é do respeitado Projeto Axé, de 2017, apontando 20 mil pessoas em situação de rua – número que, sabemos, pode ser consideravelmente maior e agravado por conta da pandemia.
Há muitos anos, os profissionais da saúde mental na cidade travam uma luta pela permanência destes equipamentos. Em Salvador, só existem 5 consultórios nas ruas, sempre com dificuldade de suporte ou equipes insuficientes para a realidade da capital. Os consultórios nas ruas, assim como todos os serviços, são fundamentais por um cuidado centrado na liberdade e no protagonismo do público atendido, fincado nos valores da Reforma Sanitária e Psiquiátrica, oferecendo maior qualidade de vida e de direitos. Estes serviços, assim como os CAPs, atendem milhares de pessoas e ajudam outras milhares de famílias de baixa renda.
A tentativa de revogar as portarias, seguindo o projeto necropolítico de privatização da saúde pública, é não só uma crueldade, como também ilegal: vai de encontro à Política de Saúde Mental Brasileira, à Política Nacional de Atenção Básica e às leis que garantem acesso digno à saúde, previstas na Constituição. E Salvador, cidade negra e pobre, precisa começar a confrontar esta tentativa, pois as consequências serão enormes.
Edição: Elen Carvalho