Bahia

ENTREVISTA

Reforma administrativa legaliza a precarização do trabalho e dos serviços públicos

“Substituir os concursos por indicação do ‘coronel’ de plantão em cada cidade é um enorme retrocesso”, afirma Graça Druk

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
Graça Druck é professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), economista e doutora em Ciências Sociais, além de pesquisadora na área de Sociologia do Trabalho. - Arquivo pessoal

A pandemia de covid-19 evidenciou a importância dos servidores públicos no enfrentamento à crise: foram homenageados profissionais de saúde e visibilizada a atuação dos professores ante a inoperância do governo em propor medidas unificadas para o país. Pesquisadores avançaram em medidas de prevenção e combate à doença e trabalhadores foram responsáveis por operacionalizar políticas públicas prestando serviços à população, em meio à politização das medidas por parte do governo.
 
Ao mesmo tempo, se articula a reforma que mina direitos destes trabalhadores, denominados pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, como “parasitas”. Para marcar o dia 28, dia do Servidor Público, conversamos com Graça Druck, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), economista e doutora em Ciências Sociais, e pesquisadora na área de Sociologia do Trabalho. Ela expõe as contradições da Reforma Administrativa (Proposta de Emenda à Constituição – PEC 32) e a necessária luta da categoria contra o vilipêndio não só de seus direitos, mas de toda a sociedade.

BdF BA: A senhora afirma que o eixo da reforma é o fim da estabilidade, que é uma proteção para a sociedade e não para os servidores. Além disso, poderão ocorrer contratos provisórios, além da terceirização. A que interesses essa proposta atende? Trata-se de uma precarização do trabalho do servidor público, que pode gerar serviços também precários?
Graça: A PEC 32 é mais uma das chamadas “reformas estruturais” defendidas pelo atual governo e pelo empresariado brasileiro em sua agenda neoliberal, que vem sendo aplicada desde o golpe de 2016. A Lei da Reforma Trabalhista e a Lei da Terceirização, aprovadas em 2017, e da Reforma da Previdência de 2019, têm em comum a rejeição da função social e protetiva do Estado. A reforma trabalhista e da previdência foram justificadas como necessárias para retomar o crescimento econômico. Decorridos quase três anos da nova legislação que retirou um conjunto de direitos, rebaixando o custo da força de trabalho, não houve recuperação de empregos, mas um aumento da informalidade e do trabalho precário. Na realidade o que justifica efetivamente essas reformas é o modelo neoliberal de sociedade, que atingiu uma fase em que se radicaliza a lógica mercantil. Trata-se de um processo de acumulação por espoliação, onde não há limites para a privatização de tudo, inclusive dos bens coletivos que são os serviços públicos. Nessa medida, quando a PEC 32 põe fim aos trabalhadores estatutários com estabilidade, e os substitui por contratos por tempo determinado e pela terceirização – modalidades que já vêm sendo utilizadas nos serviços públicos principalmente nos estados e municípios – é uma alteração constitucional que legaliza a precarização do trabalho e dos serviços, que já é uma realidade nas áreas mais fundamentais como na saúde e educação.

O presidente Jair Bolsonaro já afirmou que acha correto que cada governante possa escolher seus servidores. Há o caso das “milícias” do prefeito Crivella, no Rio, como um prenúncio do que poderia acontecer com o fim da estabilidade. A Bahia sofreu até tão pouco tempo com o coronelismo. Que riscos a senhora vê na atuação de profissionais trabalhando para governos e não para a sociedade?
Dentre as alterações propostas na PEC 32, além de uma diversidade de vínculos precários de trabalho (vínculos de experiência, com prazo determinado, terceirizados) há a redução de concursos públicos e a utilização de processos seletivos simplificados, sem editais públicos, e por indicação da instituição pública que está selecionando. Isso já vem ocorrendo nos estados e municípios, autorizados pelo governo federal, por conta da situação emergencial provocada pela pandemia. Levando-se em conta a Lei 723 (de ajuda aos estados e municípios) em vigor, que congelou os salários, a progressão na carreira e os concursos até dezembro de 2021, dá para ter uma ideia de como o poder público está contratando sem concursos. É importante registrar que a Constituição de 1988 determinou que os servidores só poderiam ingressar na carreira através de concursos públicos. Essa é a forma mais democrática de constituição do quadro dos funcionários, já que são avaliados mediante provas que os classificam pela sua qualificação. Substituir os concursos por indicação do “coronel” de plantão em cada cidade é um enorme retrocesso, é a volta do clientelismo, da chantagem eleitoral que, somada ao fim da estabilidade, estará extinguindo os servidores e os serviços públicos, pois estes não são empregados do governo, mas do Estado, da sociedade e para garantirem a regularidade e continuidade do seu trabalho, não podem ficar numa condição instável, submetidos ao “humor” de cada governante.
 
A senhora comenta (em artigo publicado com Samara Reis e Emmanoel Leone) dados do relatório do Banco Mundial que reconhece que o Brasil tem um número comparativamente modesto de funcionários públicos, e que as despesas com pessoal do governo federal têm se mantido estáveis nos últimos dez anos, não havendo descontrole de gastos. O principal argumento dos defensores da Reforma, de que o Estado está inchado e os servidores são os responsáveis pela crise orçamentária, se sustenta?
Se observarmos o orçamento federal executado em 2019, o governo gastou 38,3% (R$ 1,038 trilhão de reais) com o pagamento de juros e amortizações da dívida pública, destinados às instituições financeiras e bancos, enquanto que as áreas sociais de educação, saúde, segurança pública, assistência social e transferências para estados e municípios somaram 21,9% do total gasto pelo governo, conforme dados da Auditoria Cidadã da Dívida. Portanto, não são os servidores públicos os responsáveis pela maior fatia dos gastos públicos. 
 
As saídas que se tem tomado em nome da “crise fiscal” são a redução dos gastos sociais e dos direitos dos servidores, e em especial dos que ganham menos, já que a PEC protegerá os chamados “membros de poderes”, que recebem altos salários e benefícios. Em sua consideração, quais seriam alternativas reais para o problema do orçamento público brasileiro?
Em primeiro lugar é importante esclarecer que essa ideia de crise fiscal e de reajuste fiscal é uma invenção dos governos que aderiram ao neoliberalismo. Desde os anos 1990, especialmente no governo Fernando Henrique Cardoso, o diagnóstico de uma “crise fiscal do Estado”, de desequilíbrio das contas públicas justificou a Reforma do Aparelho de Estado e as privatizações de estatais. Os ajustes fiscais se tornaram permanentes desde então, em nome da “austeridade”. Entretanto, desde aquele período, a dívida pública brasileira só aumentou e não poderia ser diferente, pois se paga juros sobre juros, além das amortizações de dívidas que não têm qualquer contrapartida, pois cresceram como resultado da especulação financeira. É uma dívida impagável! Quando se observa a evolução das receitas e despesas primárias no orçamento federal, começa a ocorrer um déficit a partir de 2014, antes disso, desde 2003, era superavitário, isto é, as receitas eram maiores do que as despesas. Mas o déficit não decorre de nenhuma “explosão de gastos”, mas da redução das receitas, por conta da crise econômica, o Estado passou a arrecadar menos.
 
As alternativas a essa condição só podem ser construídas através de muita luta para transformar a sociedade brasileira, retirando do poder as classes que representam o capital financeirizado, dando um basta às políticas neoliberais, redefinindo, portanto, o papel e o lugar do Estado social, resgatando os direitos sociais e trabalhistas retirados, implementando reformas que atendam as necessidades das classes trabalhadoras, a maioria da sociedade e (re)construindo, dessa forma, os servidores públicos, como agentes cujo trabalho é produzir os bens coletivos, necessários socialmente, não subordinados às leis da acumulação e do mercado.
 

Edição: Elen Carvalho