A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-livro em parceria com o Itaú Cultural, divulgada na última semana, indica a perda de 4,6 milhões de leitores no país desde sua última edição, em 2015. Brasileiros que não leram nenhum livro, nem em parte, nos três meses anteriores à pesquisa representam 48% da população. Os motivos informados são na maior parte a falta de tempo (34%), não gostar (28%) e não ter paciência para ler (14%). Conversamos sobre a pesquisa com a professora Giselly Lima, da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (Faced-UFBA), e Coordenadora do projeto de extensão NAMME - Narrativas literárias, Multimodalidade e Mediações.
BdF BA: A única faixa etária na qual houve um aumento no hábito da leitura é a que abrange crianças entre 5 e 10 anos. Quais os desafios hoje na formação do leitor, em especial entre o público infanto-juvenil, e qual o papel do profissional mediador da leitura?
Giselly Lima: O aumento da leitura nesse grupo indica que o papel da escola e da família é fundamental, uma vez que as crianças nessa idade participam de práticas de leitura mediadas pelos adultos. É preciso que essas instâncias ofereçam livros, de diversos gêneros e que possibilitem diferentes experiências com a linguagem escrita, entre elas, e talvez a mais importante, a leitura literária, pois é no encantamento das histórias, por meio das narrativas ficcionais e do jogo poético com a linguagem que as crianças descobrem que os livros são uma fonte de prazer e descobertas. A pesquisa também indica que 34% dos entrevistados reconhecem que foram estimulados por alguém a desfrutar a leitura. O papel do mediador é muito importante, é ele que faz essa ponte entre o livro e o leitor em formação, ajudando a escolher o que a criança gosta, a construir suas preferências, a expressar sua própria compreensão e a compartilhar experiências com outros leitores. O principal papel do mediador é saber apresentar obras de qualidade, que conquistem a criança com narrativas e poéticas realmente interessantes, sem subestimá-la. E muita gente acha que só porque a criança se alfabetizou, não precisa mais que se leia para ela. Saber decodificar não indica que a criança já dá conta de ler uma história inteira com compreensão. Se ela lê muito lentamente, ela esquece o que lê e não consegue compreender. É importante que o mediador leia para que ela possa se concentrar no prazer de ler e depois buscar esse prazer com mais autonomia. Os adolescentes também se beneficiam de uma boa leitura em voz alta feita pelo professor.
Mesmo entre a classe A, as pessoas estão usando seu tempo livre mais em redes sociais do que com a leitura. Entre os jovens, talvez isso seja bem mais comum. Na cultura digital, há sempre essa competição ou é possível propor complementaridades?
Roger Chartier, grande historiador francês, dedicado a pesquisar práticas culturais de leitura e escrita, tem falado sobre como os algoritmos digitais estão criando um tipo de comportamento leitor superficial e preguiçoso, pois, com as bolhas produzidas por eles, trazem tudo que a pessoa espera e numa quantidade enorme. As pessoas estão ficando viciadas nessa interação imediatista com os textos que circulam nas redes sociais. Esse dado sobre a queda da leitura nesses grupos é realmente muito preocupante, porque estamos falando de privilegiados, que têm acesso ao livro, que podem escolher, comprar, tiveram uma educação de melhor qualidade do que a maioria mais pobre. Por outro lado, os dados dizem que as classes C, D e E estão consumindo mais livros, ainda que aí a presença da bíblia seja significativa. Não se pode menosprezar, como fator que influencia nessa queda, uma desvalorização da leitura que vem na corrente do movimento anti-intelectual que vem emergindo no Brasil, o que torna o quadro ainda mais preocupante. Diante disso é preciso valorizar ainda mais a cultura do livro, oferecer experiências agradáveis e frequentes com esse objeto cultural fundamental para nossa humanização. Competir, proibir, não adianta. O que adianta é oferecer alternativa. É importante não confundir a cultura digital com o capitalismo de vigilância, representado, sobretudo, pelas redes sociais e pelas grandes corporações. Há muita coisa interessante e bonita no mundo digital, que pode ser uma alternativa para as crianças que estão frequentemente no Youtube ou jogando joguinhos viciantes. Há obras de ficção interativa muito interessantes do ponto de vista da capacidade de promover experiências ricas e que desenvolvem a sensibilidade estética e habilidades de linguagem.
Segundo os pesquisadores, a escola tem importância fundamental para 70% das crianças, que não vivem em uma casa ou família leitora, porém muitas vezes o professor não é ele mesmo leitor, e as bibliotecas são carentes em acervos. Que políticas públicas precisam ser postas em prática para atender os mais vulneráveis?
A pesquisa de 2015 apontava para uma importância da biblioteca escolar, sobretudo, para as crianças do Ensino Fundamental 1. Isso é resultado do investimento que houve no PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola) entre 2003 e 2015, quando foi extinto. Sem livros não se forma leitores. Neste momento vemos políticas públicas que vêm tendendo a uma concepção tecnicista e pouco preocupada com a experiência estética, a importância do simbólico, da fantasia, da ficção, da expressão artística na vida da criança. O programa Conta Pra Mim, centrado nas práticas familiares de leitura e em um acervo limitado, desconsidera a realidade das famílias brasileiras em que os pais e mães (geralmente mães) não são leitores competentes, pois apresentam muitas dificuldades de compreensão e mesmo de condições concretas de realizar a leitura em casa. Sobre o acervo, os próprios técnicos do MEC fizeram adaptações no conteúdo das histórias baseadas em versões empobrecidas dos contos de fada. Um projeto que amputa a bagagem simbólica e estética da literatura. O Estado precisa apoiar as famílias por meio do fortalecimento da escola pública, do professor, porque é ele quem vai fazer o diálogo, sobre como elas podem atuar em casa, conhecendo e respeitando cada realidade. Um modo de o Estado dar suporte é oferecendo também aparatos culturais como bibliotecas públicas, comunitárias, feiras, espaços diversos de leitura e de vivências artísticas e culturais. Com a pandemia isso ficou bem complicado, mas, logo que possível, é preciso retomar esses espaços. A família sozinha, sem condições materiais e simbólicas, não pode dar conta de uma responsabilidade histórica do país.
Há uma distância entre o que se exige que o aluno leia e a sua realidade, e que pode desestimular uma aproximação?
São muitos os problemas que levam a escola a falhar na formação do gosto pela leitura. Há algo muito relevante, que tem a ver com a formação leitora dos docentes e o valor simbólico dado ao livro. Muitos profissionais, não só professores, mas gestores, não hesitam em dizer que ler é importante, mas que ao mesmo tempo, mantêm os livros que chegam pelos programas de distribuição guardados em caixas ou armários. Há uma sacralização do livro e, muitas vezes, não se permite que a criança, o adolescente tenha acesso direto a ele. O leitor em formação precisa construir uma intimidade com o livro. Depois que as crianças ouvem uma leitura de história ou de poesia que gostam, elas querem tocar o livro, tentar ler por si, levar o livro pra casa. É preciso autorizar o aluno a ser leitor em toda a sua plenitude, não só que faça uma leitura controlada pelo professor, limitada a fins didáticos. O professor que conhece a experiência de ler um livro pelo prazer da narrativa, da linguagem, da descoberta de novas formas de beleza pode compreender melhor a potencialidade do livro, da literatura, independente do gênero, e pode compartilhar essa experiência de ser leitor de um lugar mais potente, mais aberto. Formar o professor leitor, sensibilizá-lo para a experiência estética com a linguagem escrita é fundamental para formar estudantes leitores.
Edição: Elen Carvalho