O projeto “Lendo mulheres negras” criado em 2016, em Salvador, se dedica a apreciar e divulgar o trabalho de autoras negras, do Brasil e do mundo. A iniciativa, que promove encontros para ler e falar sobre as escritoras, suas vidas e sua produção, foi movida por um questionamento: “Quantas autoras negras você já leu?”. A indagação provoca refletir sobre o quanto mulheres negras ainda são invisibilizadas na literatura, ao mesmo tempo em que reforça a importância da leitura de seus livros. Ao longo desta semana, o BdF traz indicações de leitura feitas por mulheres, que contam de que modo foram marcadas por estas obras em suas trajetórias. Confira a quinta indicação desta série:
Carolina Guimarães / Comunicadora. Indicação: “Amada”, de Toni Morrison
Romance de 1987 da escritora estadunidense Toni Morrison, falecida no ano passado, “Amada” é um clássico literário, vencedor do Prêmio Pulitzer. Não quero dizer com isso que você precisa se aproximar dele com reverência, ou imaginá-lo como incessível, bem o contrário. Fui lê-lo movida por curiosidade após saber que tinha sido livremente inspirado em uma história real e terrível. Ambientado nos Estados Unidos do século XIX, após a guerra civil, “Amada” centra sua narrativa em torno de Sethe, uma mulher que foi escravizada, conseguiu escapar dessa condição, mas permanecia perseguida pelos traumas de seu passado – que são trazidos à tona com a chegada de Amada, uma jovem misteriosa que passa viver em sua casa e assombrá-la com a lembrança de uma tragédia.
É um livro sobre perdas e culpas, mas também sobre amor e recomeços e uma discussão profunda e sofisticada sobre o que de fato significa a liberdade - com um toque de sobrenatural. A leitura trata não somente o horror da escravidão, mas as formas de sobrevivência e resistência de homens e, especialmente, mulheres escravizadas: a força dos laços de família e comunidade, o respeito à ancestralidade e as possibilidades de superação de um trauma, na verdade, coletivo. Quem chegar ao final pode perceber também um chamado à resistência quando Sethe, diante de uma situação que evocava seu martírio do passado, escolhe um caminho bem diferente. Foi um romance que li quase num único fôlego, mas ao qual gosto de voltar de vez em quando para saborear um pouco mais o lirismo e a sensibilidade da prosa de Morrison, como nesse trecho:
“Sethe tinha vivido então vinte e oito dias – o trajeto de uma lua inteira – de vida não escrava (...). Dias de cura, facilidade e conversa de verdade. Dias de companhia: de saber os nomes de quarenta, cinquenta outros negros, suas ideias, seus hábitos; onde tinham estado e o que tinham feito; de sentir a alegria e a tristeza deles junto à dela, que deixavam tudo melhor. Uma lhe ensinou o alfabeto; outra, um ponto. Todos lhe ensinaram como era acordar de manhã e escolher o que fazer do dia. Foi assim que suportou a espera por Halle. Passo a passo, no 124, na Clareira, junto com os outros, ela recuperou a si mesma. Libertar-se era uma coisa; reclamar a propriedade desse eu libertado era outra”. (MORRISON, Toni. Amada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 143)
Edição: Elen Carvalho