O projeto “Lendo mulheres negras” criado em 2016, em Salvador, se dedica a apreciar e divulgar o trabalho de autoras negras, do Brasil e do mundo. A iniciativa, que promove encontros para ler e falar sobre as escritoras, suas vidas e sua produção, foi movida por um questionamento: “Quantas autoras negras você já leu?”. A indagação provoca refletir sobre o quanto mulheres negras ainda são invisibilizadas na literatura, ao mesmo tempo em que reforça a importância da leitura de seus livros. Ao longo desta semana, o BdF traz indicações de leitura feitas por mulheres, que contam de que modo foram marcadas por estas obras em suas trajetórias. Confira a quarta indicação da semana:
Patrícia Chaves, psicóloga e docente, Mestra em Estudos Étnicos. Livro: “Tornar-se negro”, de Neusa Santos Souza.
O ano era 2009, eu era do 2º semestre, a disciplina neurociências era ofertada no Hupes (Hospital Universitário Professor Edgard Santos). Lembro-me de chegar empolgada, com algumas colegas. Na portaria, um porteiro e uma catraca. Minhas colegas passam, na minha vez ele segurou a catraca e disse “só pode entrar aluna!”. Eu o olhava sem entender... respondi timidamente “eu estudo aqui” e ele me disse “só entra com o RM”. Não questionei, mostrei o RM. Nas minhas lembranças nenhuma colega me espera. Eu me lembro do racismo, de chorar no banheiro e da dor que senti. Foi assim por todo semestre, chegando perto da Reitoria, já pegava o RM, “só entra com o RM” ecoava na minha cabeça. Essa era a única forma que eu sabia me proteger do racismo naquela época. E te digo, eu já sabia que era negra, mas Neusa Souza me diria, “tornar-se negra” é mais que isso. A experiência de me reencontrar foi possível com sua obra. Desmascarar o racismo e reconhecer a grandeza e potência de ser mulher negra foi um misto vivido intensamente.
2020, no meio da pandemia precisei ir ao oftalmo, conversa vai e vem, ela me perguntou “seus alunos têm quantos aninhos?”. Respondi “são grandes, dou aula pra estudante de medicina!” Surpresa, ela suspende a cabeça no ímpeto e me olha novamente. A médica precisou reconstruir o olhar dela sobre mim. Sustentei o olhar e ela sorriu sem jeito. Ao final da consulta, ela errou a receita e eu respondi “tudo bem, eu sei qual é o do olho direito!” e ela, “melhor refazer...” Olhei-a novamente e disse “é verdade, refaz, se fosse minha aluna eu falaria pra refazer a receita!”. Novamente ela sorri sem jeito, refaz a receita e vou embora. O racismo é do outro, eu não carrego mais!
Hoje, negra, eu resgato e recrio a minha história e a do meu povo na minha prática diária. Obrigada, Neusa. Torna-se negra é doloroso, mas é libertador.
Edição: Elen Carvalho